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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Artigos: Felicidade e Consumo



O termo “Felicidade” vem do latim felicitate, que significa estado de quem é feliz; ventura; bem-estar, contentamento; bom resultado, bom êxito (Michaelis, 1998). Parece inevitável que, “ao se falar de felicidade, é natural que se evoque sua antítese, a saber, o sofrimento”(Fayard, 1996, p.53). Mas a felicidade seria tão somente a ausência de dor e/ou de carência material? Nesse sentido, Bauman (2009, p.39) se pergunta: “Haveria alguma coisa a dizer sobre a felicidade com confiança, sem esperar oposição?” O próprio autor responde: “Há: que a felicidade é uma coisa boa - a ser desejada e acalentada. Ou que é melhor ser feliz do que infeliz” (p.39).
Sem dúvida, “o conceito de felicidade é de tal modo indeterminado que, embora todos desejem atingi-la, não podem, contudo, afirmar de modo definitivo e consistente o que é que realmente desejam e pretendem” (Kant citado por Bauman, 2009, p.40). Nos dias de hoje, há uma “ordem” social implícita para ser feliz, como se apenas nesse estado de espírito fosse possível viver a vida. Uma obrigatoriedade para que o cidadão busque a felicidade a qualquer preço. Logo, esse sentimento fica atrelado ao consumo, certamente, o meio mais supostamente fácil de obtê-lo. Segundo Costa (2005), os indivíduos cedem à ilusão de associar aquisição de objetos materiais à felicidade, decerto é a insatisfação emocional crônica que o torna consumidor modelo, ou seja, o ímpeto de consumir não teria existido sem o desejo interiorizado de felicidade.
O vocábulo “fetiche”, do francês fétiche que significa feitiço, deu origem ao sentido de fetichismo da mercadoria que contém uma naturalização de algo que é social. A realização dos fetiches é um fenômeno da sociedade capitalista que, entre os muitos outros fetichismos produzidos pela sociedade, estar o da individualidade (Duarte, 2004). Assim, pode-se dizer com alguma propriedade que esse imperativo da felicidade, associado à individualidade, tornou-se fetiche no mundo contemporâneo, e que o homem atual se enfeitiçou por essa ideia e vive em função dessa perspectiva. Uma mercadoria subjetiva, perseguida e desejada por todos. Enfim, a felicidade como destaca Morin (2011), passou a fazer parte, a exemplo do amor e do êxito pessoal, das aspirações privadas, e como mitologia é atrativa e fascinante.
O consumo parece atender a essa demanda de felicidade, vende-se a ilusão de que por meio desse ato se tem a sensação de plenitude, da não castração. Para mostrar que o consumo é absolutamente dissociado da satisfação, Baudrillard (1970), sublinha o caráter de dever que o gozo assumiu na sociedade. A melhor prova de que o princípio e a finalidade do consumo não é o gozo, é que hoje o mesmo é obrigatório e institucionalizado, não como direito ou como prazer, mas como dever do cidadão. O homem-consumidor se considera como devendo-gozar.    
O hedonismo capitalista implicita que a felicidade, fetichizada como outra mercadoria qualquer, pode ser comprada.  Assim, a cultura da felicidade “bem dosada” induz a uma ansiedade crônica de massa, e faz desaparecer o sentido de responsabilidade moral (Lipovetsky, 2005 - grifo do autor). Livre de ideologias impeditivas, o mercado elabora novas formas, em geral competitivas, para estimular o consumo, forja necessidades que visam manter ativa a compulsão para comprar. Alcançar a felicidade vai significar a aquisição de coisas que os outros não têm chance de adquirir, exige que se faça frente aos competidores, pois incomoda mais do que alguma falta efetiva, e não ter aquilo que os vizinhos possuem (Gikovate, 2007; Bauman, 2009).
Baudrillard (1970) afirma que, a insatisfação emocional é, devotadamente, o motor do consumismo. Do contrário de que muitos estudiosos imaginam, inexiste uma sociedade de abundância. Na verdade, “a sociedade de consumo, no entanto, nem é abundante para ricos, nem para pobres, pois o seu objetivo é regular a escassez de bens materiais ou simbólicos” (Costa, 2005, p.139 - grifo do autor). De alguma forma, o sistema capitalista atrelou a felicidade ao consumo, suscitando, assim, a mitologia de que por meio dos bens materiais o sujeito encontra a felicidade, e os objetos de consumo, por sua vez, tornam-se os fetiches que vão simbolizar a felicidade “materializada”. 

Apesar da “promessa vinda lá do alto e das crenças populares, o consumo não é sinônimo de felicidade nem uma atividade que sempre provoque sua chegada” (Bauman, 2008, pp.61-2). Mas, o consumo é visto na terminologia de Layard (citado por Bauman, 2008) como uma “esteira hedonista”, não é uma máquina para produzir um volume crescente de felicidade, não faz aumentar a soma total de satisfação de seus praticantes. Porém, se criou o sistema de crédito que, num processo de modernização e suposta humanização democrática, dar-se acesso de consumo aos diversos níveis de camadas sociais.
Tem-se, a priori, em mente que o pagamento a crédito não seria tão vantajoso para as financiadoras, mas, na realidade, existe todo um mecanismo que, por meio dessa via, as mantém prósperas, sob medida de um vínculo da dependência consumista. Assim, “a atual ´contração de crédito` não é um resultado do insucesso dos bancos. Ao contrário, é fruto de seu extraordinário sucesso - sucesso ao transformar uma enorme maioria de homens e mulheres, velhos e jovens numa raça de devedores” (Bauman, 2010, p.13 - grifos do autor). O cartão de crédito, pela facilidade que explicita, gera a sensação de poder na aquisição. Decerto, faz do cidadão mais humilde, por vezes aviltado nos seus direitos básicos, sentir-se, por exemplo, no ato da compra, restaurado na sua autoestima.
Cada ação consumista vai “massagear” seu ego, afirmá-lo nesse lugar de prestígio, mesmo que efêmero, por está consumindo. Enfim, isso lhe dá possivelmente um sentido de pertença que, em outros espaços desta sociedade anônima, se vê desvalorizado. Para Bell (citado por Ferry, 2008), o maior instrumento de destruição da ética protestante foi a invenção do crédito. Antes, para consumir, era necessário economizar, agora, com a disponibilidade do crédito, pode-se imediatamente satisfazer os desejos.
Para muitos, o único significado que a ideia de felicidade pode ter é a ausência de infelicidade, uma ruptura na vida cotidiana e a frustração da expectativa. Nas sociedades rigidamente estratificadas e marcadas por uma polarização aguda de aceso a valores materiais e simbólicos (prestígio, respeito, proteção contra a humilhação), são os cidadãos situados “no meio”, no espaço entre o topo e a base, que tendem a ser mais sensíveis às ameaças de infelicidade (Bauman, 2009 - grifo do autor). Portanto, tudo que ajuda a estimular a produtividade e alivia a dor, torna-se útil, pois o critério final de avaliação não é de forma alguma a utilidade e o uso do que se produz, mas a “felicidade”, isto é, o prazer experimentado no consumo das coisas (Arendt, 2010 - grifo da autora).
Em vista disso, quando o cidadão não consegue alimentar e se alimentar da roda viva do consumo ou perde as perspectivas de fazer parte deste mundo consumista, ou seja, de ser “feliz”, é tomado pela sensação de inadequação, desatualização e fracasso. Para Bernardi (2005, p.58), “a depressão está intimamente ligada à ideologia de autorrealização e ao imperativo felicista”. Na opinião de Lipovetsky (2005, p.34), “enquanto a cultura da felicidade exime de culpa a introspecção subjetiva, simultaneamente desencadeia uma dinâmica geradora de ansiedade - isso pela própria natureza das normas paroxísticas do máximo bem-estar pessoal ou da aparência ideal”.
Hoje, parece mais fácil se apoderar dessa felicidade porque, cada vez mais as pessoas estão centradas nas próprias necessidades e no individualismo desenfreado. Na compreensão de Duarte (2005), o pós-modernismo é a forma mais radical de fetiche da individualidade já produzidas pelas ideologias da sociedade burguesa. Porém, o indivíduo pós-moderno não é consciente, livre e autônomo. Ainda para esse autor, “a crítica pós-moderna ao sujeito da modernidade não é, portanto, a superação do fetichismo da individualidade, mas sim, a expressão mais radical desse fetichismo, é a total rendição à individualidade alienada” (p.229).
Dado que, às pessoas quanto às coisas perderam sua solidez na sociedade moderna, seu caráter definitivo e sua continuidade, assim já não se ambicionam tanto compreender e repensar o mundo, mas de viver um pouco mais felizes no imediato (Lipovetsky, 2004; Lasch citado por Baumam, 2011a). Segundo Gramsci (citado por Bauman, 2011b, p.146), “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos”. O consumismo não seria um desses sintomas?
Certamente, isso deve ser incrementado pelo contexto atual, pela quebras dos parâmetros num mundo em constantes mudanças. A rubrica alemã Unsicherheit, que significa incerteza, insegurança e falta de garantia (Bauman, 2000), deixa bem claro a vulnerabilidade deste mundo global e líquido. Enfim, como diz Marx (citado por Duarte, 2004, pp.240-1):
O capitalismo cria insatisfação porque ele produz as condições para o desenvolvimento livre e universal da individualidade, mas frustra esse desenvolvimento ao subjugar os seres humanos ao poder do capital. A única satisfação que ele permite é a satisfação medíocre, vulgar, decorrente da compra de mercadorias, a satisfação do desejo de “ter”.
Nessa perspectiva, a felicidade se pauta na superficialidade, na falta de reflexão, na verdade, “a humanidade sofre de uma imensa carência introspectiva” (Jung citado por Morin, 2007, p.94). Logo, o principal critério que leva à felicidade é o consumo facilitado pelo cartão de crédito disponibilizado a todos os cidadãos que comprove, pelo menos, um salário mínimo. Em síntese, de algum modo, esses sujeitos são confiscados pelos intensos bombardeios de propaganda e promessa de suaves prestações sobre alguns produtos que, de fato, precisam e sobre outros em relação aos quais não têm a menor necessidade. Diríamos que o cartão de crédito é o Iluminismo do consumismo pós-moderno. Visto que, “uma parte de nossas felicidades é feita de prazeres ´inúteis`, de jogo, de superficialidade, de aparências, de facilidades mais ou menos insignificantes” (Lipovetsky, 2007, p.347 - grifo do autor)
Na ótica capitalista, vencer na vida é ter o dito bom emprego, possuir bens materiais, garantir o futuro da espécie por meio do casamento. Assim, ser feliz também se confunde com socialmente ajustado e produtivo. Mas, a felicidade é subjetiva, um sujeito pode se sentir e se dizer feliz numa mesma situação e/ou condição em que outro não percebe a menor dádiva de felicidade. Segundo Fayard (1996), o indivíduo pode-se ser feliz apesar das dores físicas, da pobreza e outras desvantagens. Por outro lado, há quem não sofra, goze de muito boa saúde, tenha grandes recursos pecuniários e, apesar de tudo, não é feliz. Portanto, ser feliz é estar bem como se pode estar e saber reconhecê-lo.
Finalmente, poucos instrumentos poderão contradizer se o indivíduo que se diz feliz, se de fato esse estado é vivenciado. Num mundo inseguro, cuja quebra dos antigos paradigmas tem causado instabilidades e, por conseguinte, constantes transformações, parece mais vantajoso acreditar ou lutar pela conquista dessa suposta felicidade. Do contrário, certamente, a realidade se torna pouco tolerável ou insuportável. No fundo, se pensar positivo, ou seja, na felicidade, não trouxer um bem, mal é que não faz. Como o parâmetro da busca da felicidade se nivela por baixo, pelo medíocre e pelas insignificâncias, parece pertinente o que Nietzsche (2004, p.189) recomenda: “quem quiser colher felicidade e satisfação na vida, que evite sempre a cultura superior”.
Atualmente, as pessoas cada vez mais se tornam ciborgues, tem inúmeros amigos virtuais nas redes sociais, os quais fomentam a ilusão de que não estão sozinhas; os relacionamentos podem terminar com uma simples mensagem de texto1, não desgrudam do celular, do notebook, postam desabafos ou as mais diversas banalidades cotidianas na Internet, e dispõem de vários cartões de crédito. Em razão disso, para o homem pós-moderno não será difícil se sentir feliz, seus vínculos ou envolvimentos são efêmeros e superficiais, e seus sentimentos não existem ou estão pela metade. Então, mero tubo consumidor e processador de futilidades não teria do que sofrer ou se queixar, assim, a felicidade pode até ser eterna.

Nota:

  1. Um terço dos rapazes e quase um quarto das moças, nos Estados Unidos, não veem nada de errado nisso (Haste citada por Bauman, 2011c).

Referências

Arendt, H. (2010). A condição humana. (11a edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Baudrillard, J. (1970). La société de consommation. Paris: Gallimard.
Bauman, Z. (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2009). A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2010). Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2011a). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2011b). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______. (2011c).  A ética é possível num mundo de consumidores?  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bernardi (Bifo), F. (2005).A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e crise da new economy.  Rio de Janeiro: DP&A.
Costa, J. F. (2005). O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. (4a edição). Rio de Janeiro: Garamond.
Duarte, N. (Org.). (2004). Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores Associados.
Fayard, M. J. (1996). O que é a felicidade? In A essência da felicidade - a arte de viver. São Paulo: Martin Claret. Coleção Pensamento de Sabedoria.
Ferry, L. (2008). Famílias, amo vocês: política e vida privada na época da globalização. Rio de Janeiro: Objetiva. DIFEL, 2007.
Gikovate, F. (2007). Dá pra ser feliz... Apesar do medo. (4a edição). São Paulo: MG Editores.
Lipovetsky, G. (2004). Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina.
______. (2005). A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole. 
______. (2007). A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras.
Michaelis. (1998). Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramento.
Morin, E. (2007). O método 6: ética. (3a edição). Porto Alegre: Sulinas.
______. (2011). Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 1: neurose (10a edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Nietzsche, F. W. (2004). Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras.