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domingo, 21 de agosto de 2011

CRÔNICAS DO VERBO ENLATADO 2

As mentiras que minha mãe contava



Eu sou um escritor, sou um mentiroso e me é mais fácil afirmar que sou um mentiroso que um escritor. O advogado também é um mentiroso e nem por isso é um escritor. A afirmação de que sou escritor também pode ser mais uma mentira, mas tanto na literatura quanto nos julgamentos a diferença entre verdade e mentira é muito tênue. Minha mãe ensinou-me a mentir sem sentir saber que estava mentindo ou que a mentira às vezes é uma forma de verdade. Quando alguém com quem minha mãe não queria falar a procurava, ela pedia para dizer que não estava. Depois falava que estava cansada, que ela sabia o que a pessoa queria e mais tarde iria ao seu encontro. Suas mentiras, que também eram minhas, me pareciam tão necessárias que eu dizia que ela não estava sem que ela houvesse me incumbido disso. Se seu olhar estivesse distante ou se descansasse, eu falava que ela não estava e tinha para mim que não estava mentindo, afinal ela estava em qualquer lugar que não fosse nossa casa.
Através dos seus relacionamentos percebia que quando algo não ia bem, ou quando eles terminavam, por incompatibilidade devido ao acúmulo de erros, sempre superior aos acertos, não era permitido violar o silêncio de suas sentenças absolutas que diziam muito mais do que se não fossem castradas.
Utilizar a saúde e a condição financeira, como meio para se aproximar ou afastar através de estórias era quase um padrão, que se sustentará provavelmente até a mente não for mais funcional.
A mentira na minha casa sempre foi uma metáfora da verdade. Nunca acusávamos uns aos outros de mentirosos e nem nos orgulhamos de ser verdadeiros, sabíamos sermos verdadeiros com nossas mentiras metafóricas. Meu avô não mentia, omitia, calado e introspectivo. Também nunca se valeu da verdade como um bem. Toda vez que a verdade se fez necessária na minha casa, junto dela vieram outros sentimentos menos nobres que a veracidade dos acontecidos; tais revelações foram indispensáveis nos devidos momentos, conquanto o embuste já estivesse sido usado e causado o mesmo efeito.
Aprendemos a usar inverdades ou verdade e assumir as conseqüências, e o que definia o resultado da ação, como boa ou ruim, não era a autenticidade do discurso, mas sua legitimidade. As palavras da minha mãe eram certas porque além de ser mãe ela não deixava espaço para a dúvida. A firmeza na voz, a convicção, a autoridade, eram convincentes.
O problema da mentira é a conotação pejorativa que lhe dão e para isso temos alternativas. O escritor não mente, ele cria um universo ficcional e tudo o que escreve é real naquele ambiente. A fábula é um jeitinho especial de ensinar os valores morais e éticos para nossas crianças, ou seja, uma mentira para explicar uma grande verdade. A metáfora não é falsa nem verdadeira, mas serve para distorcer a verdade e contorcer a mentira. Ainda há o ponto de vista que relativiza aquela que sonha em ser absoluta, por exemplo: um sorriso falso pode ser sarcasmo verdadeiro, e uma briga falsa pode ser um artifício para uma reconciliação verdadeira.
Pode até parecer uma apologia à mentira, mas ocorre que ela é produto da verdade e vice-versa, logo também seria uma apologia ao verdadeiro. O falso é o método para se conhecer ou construir o real e embora minha mãe não seja uma filósofa, ela me antecipou e mostrou na prática a afirmativa de Nietzsche: ”Quem não sabe mentir não conhece a verdade”.




“Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
Nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo
Porque a verdade passará a ser servida
Antes da sobremesa.”

(artigo V dos “Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello)