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sábado, 14 de julho de 2012

Artigos: Ciência, Mito e Filosofia




A idéia de totalidade onde a filosofia abandonou a investigação de um dos elementos que constituíam até então a sua essência, o que foi o momento de Hegel onde a idéia de estabilidade foi substituída pela idéia de movimento universal. O hegelianismo comete o erro de querer explicar todas as coisas. As coisas não devem ser explicadas mas vividas. Não pode existir sistema da existência. A verdade objetiva tal como Hegel, é a  morte da existência.
Nas especializações do saber cientifico serão descritos: A especialização que visa incrementar a produtividade científica, as vantagens da especialização e suas conseqüências nefastas. Faremos um comentário geral sobre a ciência e mito e as características da ciência, onde para a ciência o universo é ordenado com leis acessíveis à razão; a ciência é menos ambiciosa que o pensamento mítico, onde mito e ciência obedecem o mesmo princípio.
Relacionados também os textos que tratam do papel da teoria, da imaginação na atividade cientifica; a experiência determina a validade dos mundos possíveis; a ciência pretende que as suas explicações sejam objetivas.
Ciências ou ciência? Vamos pois tentar, em primeiro lugar, compreender o que é o conhecimento científico, tendo em conta que a ciência é hoje uma realidade complexa e multifacetada onde dificilmente se descobre uma unidade. Citadas serão conseqüências as características da ciência, suas unidades e diversidade. A ciência pode ser descrita como um jogo a dois parceiros: trata-se de adivinhações sobre o comportamento de uma unidade distinta de nós.
No texto "ciência e reflexão filosófica" serão destacados os textos sobre: ciência e sociedade, ciência e cultura, os limites de uma cultura científico-tecnológica, a ciência e política, ética e ciência o para encerar será descritos valor do espirito científico. 


Os primeiros filósofos
Os gregos são os primeiros a colocar a questão da realidade numa perspectiva não mítica. Embora revelando influências do pensamento mítico anterior e contemporâneo, as explicações produzidas pelos primeiros filósofos, por volta do século VI a. C., na colônia grega de Mileto, na Ásia Menor, são consideradas por muitos o embrião da ciência e da filosofia, ou seja, do pensamento racional (cf. texto de F. M. Cornford, A cosmogonia jônica).
Tales, Anaximandro, Pitágoras
Mais antigo filósofo de que se tem conhecimento que terá encontrado uma resposta para esta questão foi Tales. Pensou ele que o princípio único de todas as coisas era a água. Pela mesma época outros filósofos tomaram posições mais ou menos parecidas com a de Tales. Foi o caso de Anaximandro e de Pitágoras que fizeram do indefinido e do número respectivamente o princípio originário a partir do qual tudo proveio (cf. Fragmentos dos Pré-Socráticos).
Heraclito e Parménides
As respostas irão progressivamente tornando-se mais elaboradas, embora sempre centradas no problema da unidade ou da multiplicidade, da mudança ou da permanência das coisas. Nesse sentido, Heraclito (cf. texto de J. Brun, Uma filosofia do devir?) e Parménides (cf. texto do próprio, A unidade e imutabilidade do Ser) representam, historicamente, um radicalizar de posições: o primeiro, aparece como o defensor da mudança: não se pode penetrar duas vezes no mesmo rio; o segundo, como partidário radical da unidade fundamental de todas as coisas. Esta oposição não resiste, todavia, a um estudo aprofundado das posições dos dois pensadores.
Ficaram célebres os argumentos ou paradoxos inventados por Zenão de Eleia, discípulo de Parménides, com o objetivo de mostrar o caráter contraditório do movimento, e assim defender as teses do mestre sobre a imutabilidade do real (cf. texto de Kirk & Raven, Paradoxos de Zenão). Para além de uma reflexão sobre a natureza do espaço, do tempo, do conhecimento e da realidade, os paradoxos de Zenão desencadearam uma crise na matemática da Antigüidade, que só viria a ser resolvida nos séculos XVII e XVIII d. C., com a criação da teoria das séries infinitas.
Sócrates
Finalmente, com Sócrates (cf. texto de Platão, Sócrates e os pré-socráticos) verifica-se uma assinalável ruptura em relação aos antecessores. Explicar a origem e a verdade das coisas através de objectos e realidades materiais torna-se absurdo. Só no interior do homem se pode encontrar a verdade e Sócrates passa toda uma vida a ridicularizar aqueles que pensam saber qualquer coisa que não seja de natureza espiritual. A ontologia, ou ciência do ser, entra aqui numa fase completamente nova, mas para isso remetemos para o capítulo relativo às respostas dos filósofos, mais especificamente as respostas de Platão, discípulo directo de Sócrates, e Aristóteles, discípulo de Platão.  


Podemos dizer que estas filosofias se opõem às concepções clássicas da filosofia, tais como as encontramos quer em Platão, quer em Espinosa, quer em Hegel; opõem-se de fato a toda a tradição da filosofia clássica desde Platão.

A filosofia platônica, tal como a concebemos vulgarmente, é a investigação da idéia, na medida em que a idéia é imutável. Espinosa quer ter acesso a uma vida eterna que é beatitude. O filósofo em geral quer encontrar uma verdade universal válida para todos os tempos, quer elevar-se acima da corrente dos eventos, e opera ou pensa operar só com a sua razão. Seria necessário reescrever toda a história da filosofia para explicar contra o que se insurgem as filosofias da existência.
A filosofia era concebida como o estudo das essências. A maneira pela qual os filósofos da existência concebem a formação da teoria das idéias em Platão é a seguinte: um escultor para esculpir uma estátua, um operário para construir uma mesa, consultam idéias que estão perante o seu espírito; qualquer coisa feita pelo homem é feita porque ele contempla uma certa essência. Ora, é a partir da ação do operário ou do artista que se conceberá qualquer ação. A propriedade essencial destas essências ou destas idéias é essencialmente serem estáveis. Segundo Heidegger, este pensamento encontra-se fortalecido pela idéia de criação tal como a concebemos na Idade Média. Tudo foi imaginado como por um grande artista, a partir de idéias.

Os filósofos da existência serão levados a opor-se à idéia de essência considerada neste sentido. Heidegger diria: os objectos, os instrumentos, têm talvez essências, as mesas e as estátuas de que há pouco falamos têm mais essências, mas o criador da mesa ou da estátua, isto é, o homem, não tem uma tal essência. Posso perguntar-me o que é a estátua. É que ela tem uma essência. Mas, em relação ao homem, não posso perguntar-me: o que é, só posso perguntar-me: quem é? E neste sentido ele não tem essência, tem uma existência. Ou então dizemos - é a fórmula de Heidegger -: a sua essência está na sua existência.
Haveria aqui que mencionar uma diferença entre o pensamento de Sartre e o pensamento de Heidegger. Sartre escreveu: "A essência vem após a existência". Heidegger condena esta fórmula, porque, na sua opinião, Sartre toma nesta fórmula a palavra "existência" e a palavra "essência" no seu sentido clássico, inverte a sua ordem, mas essa inversão não faz que ele não permaneça no interior da esfera do pensamento clássico. Ele não deu devida conta do que, para Heidegger, constitui um dos elementos fundamentais da sua própria teoria. Esse elemento fundamental é que a existência para ele deve ser considerada como sinônima de "ser no mundo": ex-sistere, "ser fora de si". Se vemos que a existência é isso, e não a simples realidade empírica, chegamos a uma fórmula que não é a de Sartre: a essência vem após a existência, mas que é esta que Heidegger adota: a essência do homem é a existência, a essência do homem é ser fora de si. A luta contra a essência, contra a idéia, contra Platão, continua-se por uma luta contra Descartes. Kierkegaard disse que a fórmula de Descartes: "Penso, portanto existo", não corresponde à realidade do homem existente, dado que quanto menos penso, mais sou, e inversamente.
É necessário recordar, sem dúvida, que ele próprio recorre ao que chama um pensamento existencial, ou seja um pensamento que está simultaneamente em luta com a existência e de acordo com ela. Em qualquer caso, é muito diferente do pensamento tal como o concebe Descartes, isto é, tão universal e tão objectivo quanto possível.
Falamos de oposição a Platão, de oposição a Descartes; num e noutro, a filosofia é a investigação do que é estável e universal.

Parece que houve um momento na história da filosofia em que a filosofia abandonou a investigação de um dos elementos que constituíam até então a sua essência; foi o momento de Hegel, no qual a idéia de estabilidade foi substituída pela idéia de movimento universal. Mas Hegel conserva as idéias de objetividade, de necessidade, de universalidade, de totalidade, dos filósofos clássicos: só é necessário mudar a idéia, também ela fundamental, de estabilidade. E sucede que pelo seu gênio Hegel consegue manter simultaneamente a idéia de movimento e as idéias de objetividade, de necessidade, de universalidade, e fortalecer a idéia de totalidade. A meditação sobre o movimento como essência, introduzida por Nicolau de Cusa e Giordano Bruno no domínio do pensamento, foi introduzida por Leibniz no próprio domínio de uma filosofia racional. A obra de Hegel foi unir ainda mais estreitamente movimento e razão. Foi principalmente por oposição a Hegel que se formou, no espírito de Kierkegaard, a filosofia da existência. Ele vê naquela o final da tradição filosófica que começa com Platão e talvez com Pitágoras.
Que censura Kierkegaard em Hegel? Censura, em primeiro lugar, que tenha feito um sistema, dado que não há, diz Kierkegaard, sistema possível da existência. Kierkegaard recusa-se a ser considerado como um momento no desenvolvimento da realidade. Para Hegel, só há uma realidade verdadeira e plena, é a totalidade, a totalidade racional, porque tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real. Esta totalidade é a Idéia. Tudo o que existe só existe pela sua relação com uma totalidade e finalmente com a totalidade. Consideremos o mais fugidio dos nossos sentimentos. Só tem existência porque faz parte dessa totalidade que é a minha vida. Mas a minha própria vida, o meu próprio espírito, só existe, dirá Hegel, porque está em relação com a cultura de que sou uma parte, com a nação de que sou um cidadão, com a minha função e a minha profissão. Estou profundamente unido ao Estado de que sou membro, mas esse próprio Estado é apenas uma parte do vasto desenvolvimento da história, isto é, da Idéia única que se explicita em todo o curso deste desenvolvimento. E chegamos à idéia de um universal concreto que compreende todas as coisas. Do mais fugidio sentimento, vamos à idéia universal de que todos os universais concretos, como as obras de arte, as pessoas, os Estados, são apenas partes. E esta idéia universal existe no início das coisas tanto como no fim, dado que, sendo a única realidade, ela é a realidade eterna (...)

O hegelianismo comete o erro de querer explicar todas as coisas. As coisas não devem ser explicadas, mas vividas. Assim, em vez de querer apreender uma verdade objetiva, universal, necessária e total, Kierkegaard dirá que a verdade é subjetiva, particular e parcial. Não pode existir sistema da existência; as duas palavras "existência" e "sistema", são contraditórias. Se escolhermos a existência, devemos abandonar qualquer idéia de um sistema do gênero do de Hegel. O pensamento nunca pode atingir senão a existência passada ou a existência possível; mas a existência passada ou a existência possível são radicalmente diferentes da existência real. Se sabemos tão poucas coisas a respeito de Sócrates é precisamente porque Sócrates é um existente; a nossa ignorância a seu respeito é a prova de que existia em Sócrates algo que deve necessariamente escapar à ciência histórica, uma espécie de lacuna na história da filosofia, pela qual se manifesta que onde há existência não pode haver realmente conhecimento. Sócrates é o incomensurável, é sem relação predicado. Ora há mais verdade na ignorância socrática que em todo o sistema hegeliano. Existir objectivamente, ou, melhor, ser na categoria do objectivo, já não é existir, é ser distraído da existência. A verdade objetiva tal como a concebe Hegel é a morte da existência.
A oposição de Kierkegaard e Hegel continuará em todos os planos. Por exemplo, para Hegel, o exterior e o interior são idênticos. O segredo não tem lugar no mundo hegeliano. Mas Kierkegaard sabe que há coisas nele que não podem ser exteriorizadas, que não podem exprimir-se.
Além disso, o sentimento de pecado far-nos-á ultrapassar, segundo Kierkegaard, todas as categorias filosóficas para entrar na vida religiosa. O filósofo hegeliano dirá, sem dúvida, que ele também chega à religião e mesmo àquilo a que chama a religião absoluta, que se identifica com a filosofia no seu mais alto nível. Mas também aqui se verifica uma oposição entre Hegel e Kierkegaard. Dado que Hegel vê no Cristo o símbolo da humanidade em geral, da própria razão: o cristianismo é a religião absoluta, porque nele se exprime da maneira mais válida esta identificação de um indivíduo com a humanidade considerada no seu conjunto. Mas, para Kierkegaard, o Cristo é um indivíduo particular, não simboliza o que quer que seja, e é este indivíduo particular que é o infinito e o absoluto. O sistema de Hegel é um sistema de mediação universal, mas há qualquer coisa que a filosofia não pode mediatizar, é o absoluto, absoluto cristão, o Deus cristão para Kierkegaard, e, por outro lado, o indivíduo como absoluto. Nos momentos verdadeiramente religiosos, nós apreendemos uma relação entre estes dois absolutos, o indivíduo e Deus, mas uma relação completamente diferente das relações que o hegelianismo pode conceber pela mediação.
Deste modo, existe uma oposição entre o mediador concebido no sentido cristão e a mediação hegeliana.

Podemos agora regressar à idéia de sistema. Dissemos que a idéia de sistema não pode satisfazer o pensamento apaixonado e decidido de Kierkegaard. Kierkegaard pode tomar a ofensiva e mostrar que na realidade o sistema não pode ser. Não só não há sistema da existência, mas o sistema não pode constituir-se realmente; porque se põe o problema de como o começar? E foi esse, efetivamente, um dos problemas que se puseram ao próprio Hegel: como começar um sistema? Além disso, o sistema de Hegel em rigor não conclui, visto que não poderia concluir sem que Hegel nos desse uma ética, e ele não a formulou. E não só o sistema não começa e não conclui, mas nada pode existir no meio deste começo ausente e desta conclusão ausente, visto que este meio é fornecido pela idéia de mediação que não pode dar-nos acesso à realidade.
Mas o que é que existe atrás do sistema de Hegel? Um indivíduo que quer constituir um sistema. Atrás do sistema, há Hegel, há o homem Hegel, que é um indivíduo que refuta pela sua própria existência, pela sua própria vontade de sistema, todo o seu sistema.
A luta de Kierkegaard contra Hegel é por ele concebida como a luta contra toda a filosofia. Hegel é o símbolo de toda a filosofia, tanto mais que a filosofia hegeliana era a filosofia dominante nessa época, e mesmo dominante no interior da igreja luterana, à qual pertencia Kierkegaard.



O fenômeno da especialização das ciências tinha - desde o início do século XIX - um caráter histórico inelutável. Com efeito, não se tratava senão da reprodução, no domínio da organização das investigações, de uma das mais típicas situações que se vinham impondo nos meios industriais nascentes, por óbvias razões econômicas: a subdivisão do trabalho. Assim como esta visava incrementar a produção de mercadorias, também se tornava necessária para incrementar a produtividade científica.

A primeira vantagem da especialização é que uma delimitação precisa dos campos de pesquisa - não só os das ciências fundamentais, como pretendia Comte, mas também os dos seus, "capítulos" e "subcapítulos" - dá a cada investigador a possibilidade de uma aprendizagem rápida das técnicas aplicadas habitualmente no seu campo e, portanto, permite que se tire imediatamente partido das investigações, sem dispersão de energias por mil direções possíveis. Mas há ainda um outro aspecto, não menos importante. Com as investigações especializadas nascem também as linguagens expressamente construídas por cada ciência em ordem a denotar todas (e só as propriedades dos fenômenos) que ela tenciona tomar em consideração: linguagens que facilitam, de uma maneira espantosa, a exatidão das expressões, o rigor dos raciocínios, a clarificação dos princípios que fundamentam cada uma das teorias. Estas especialização e tecnicização das linguagens de cada ciência foram justamente dois dos caracteres que mais diferenciaram as investigações do século XIX relativamente às do século precedente, permitindo a superação de muitos obstáculos que antes pareciam inultrapassáveis.

A especialização e a tecnicização das linguagens científicas tiveram, porém, uma outra conseqüência bastante menos positiva: foram elas também responsáveis pelo fechamento do cientista especialista na sua disciplina, sem sequer se interrogar sobre a conveniência ou não de uma eventual integração, ou de uma coordenação com o trabalho dos investigadores de outros campos; e isto por causa da efetiva dificuldade de controlar o autêntico rigor de argumentação desenvolvida por uma linguagem diferente da sua.
Aconteceu, assim, uma pulverização da ciência em tantas ciências particulares, dando origem a um mosaico de resultados concretos onde não se verá, com facilidade, um projeto fornecido da mínima coerência. Trata-se da situação que, em 1900, David Hilbert pensava estar irremediavelmente vitoriosa em todas as ciências da natureza e da qual pretendia ver salva, pelo menos, a matemática: situação que conduz cada cientista (ou cada grupo de cientistas) a um isolamento cada vez maior porquanto lhe dá uma linguagem, uma problemática e uma metodologia totalmente incompreensíveis para quem não cultiva a mesma especialidade.
(...) É possível um desenvolvimento da especialização sem contrapartida de um fechamento no especialismo? Trata-se de um quesito da máxima importância, não só para a filosofia da ciência, como também para os destinos da cultura e da civilização.
(...) A ciência afastou-se da cultura (esta, com efeito, quer queira quer não, teve sempre como eixo condutor a própria filosofia). Daqui nasceu a famosa separação das "duas culturas" (a científica e a humanística) ou, mais precisamente, a formação de uma cultura de caráter velho, insensível às exigências do nosso tempo.
Vale a pena referir, neste ponto, uma aguda observação de Elio Vittorini: em sua opinião, "a cultura é sempre baseada na ciência; contém sempre a ciência", a menos que aquela, hoje, habitualmente chamada "cultura humanística", seja, em rigor, "uma cultura velho-científica", isto é, uma cultura irremediavelmente velha e por isso inadequada à nossa época.
Mas como poderá surgir uma cultura nova, adequada à nossa época, se os cientistas, fechados no seu especialismo, continuarem a recusar assumir um vínculo sério com os problemas gerais?




Foi, sem dúvida, a estrutura do mito judaico-cristão que tornou possível a ciência moderna. Porque a ciência ocidental funda-se na doutrina monástica dum universo ordenado, criado por um Deus que está fora da natureza e a governa por leis acessíveis à razão humana.
É provavelmente uma exigência do espírito humano ter uma representação do mundo que seja unificada e coerente. Na sua falta aparecem a ansiedade e a esquizofrenia. E é preciso reconhecer que, em matéria de unidade e de coerência, a explicação mítica é muito superior à científica. Porque a ciência não tem como objectivo imediato uma explicação completa e definitiva do universo. Ela só opera localmente. Ela procede através duma experimentação pormenorizada sobre fenômenos que consegue circunscrever e definir. Contenta-se com respostas parciais e provisórias. Pelo contrário, os outros sistemas de explicação, quer sejam mágicos, quer míticos, quer religiosos, englobam tudo. Aplicam-se a todos os domínios. Respondem a todas as questões. Explicam a origem, o presente e mesmo o futuro do universo. Pode recusar-se o tipo de explicação oferecido pelos mitos ou pela magia. Mas não se lhes pode negar unidade e coerência.

(...) À primeira vista, pelas perguntas que faz e as respostas que procura, a ciência parece menos ambiciosa que o mito. De fato, o início da ciência moderna data do momento em que as questões gerais foram substituídas por questões limitadas; em que, em vez de se perguntar: "Como foi criado o universo? De que é feita a matéria? Qual é a essência da vida?", começou a perguntar-se: "Como cai uma pedra? Como corre a água num cano? Qual é o percurso do sangue no corpo?" Esta mudança teve um resultado surpreendente. Enquanto as questões gerais apenas recebiam respostas limitadas, as questões limitadas conduziram a respostas cada vez mais gerais. Isto ainda se aplica à ciência de hoje.

(...) No esforço de cumprir a sua missão e encontrar uma ordem no caos do mundo, mitos e teorias científicas operam segundo o mesmo princípio. Trata-se sempre de explicar o mundo visível por forças invisíveis, de articular o que se observa com o que se imagina. Pode considerar-se o relâmpago como a cólera de Zeus ou como um fenômeno electrostático. Pode ver-se numa doença o efeito da má sorte ou duma infecção microbiana. Mas, de qualquer modo, explicar o fenômeno é sempre considerá-lo o efeito visível duma causa escondida, ligada ao conjunto de forças invisíveis que se julga regerem o mundo.

Mítica ou científica, a representação do mundo que o homem constrói tem sempre grande parte da sua imaginação. Porque, a pesquisa científica, contrariamente ao que muitas vezes se julga, não consiste em observar ou acumular dados experimentais para deles deduzir uma teoria. Pode perfeitamente examinar-se um objeto durante anos sem daí tirar jamais a menor observação de interesse científico. Para se obter uma observação com algum valor, é preciso, ter já, à partida, uma certa idéia do que há a observar. É preciso ter já decidido o que é possível. Se a ciência evolui, é muitas vezes porque um aspecto ainda desconhecido das coisas se revela subitamente; nem sempre em conseqüência do surgir de aparelhagem nova, mas graças a uma maneira diferente de examinar os objectos, que passam a ser vistos sob um novo ângulo. Esta observação é necessariamente guiada por uma certa idéia do que pode bem ser a "realidade". Implica sempre uma certa concepção do desconhecido, dessa zona situada precisamente para além daquilo em que a lógica e a experiência nos levam a acreditar. Segundo os termos de Peter Medawar, a investigação científica começa sempre pela invenção dum mundo possível, ou dum fragmento de mundo possível.

(...) Para o pensamento científico, a imaginação não é mais do que um dos elementos do jogo. O pensamento científico tem de se expor, em cada etapa, à crítica e à experiência para delimitar a parte de sonho na imagem que elabora do mundo. Para a ciência há muitos mundos possíveis, mas o único que lhe interessa é aquele que existe e que já há muito tempo prestou as suas provas. O método científico confronta sem descanso o que poderia ser e o que é. É esse o meio de construir uma representação do mundo sempre mais próxima daquilo que chamamos "a realidade".

(...) O processo científico representa um esforço para libertar de toda a emoção a pesquisa e o conhecimento. O cientista procura subtrair-se ele próprio ao mundo que tenta compreender. Procura pôr-se de fora, colocar-se na posição dum espectador que não faça parte do mundo a estudar. Por este estratagema, o cientista espera analisar o que considera ser "o mundo real à sua volta". Esse pretenso "mundo objectivo" torna-se assim esvaziado de espírito e de alma, de alegria e de tristeza, de desejo e de esperança. Em suma, este mundo científico ou "objectivo" torna-se completamente dissociado do mundo familiar da nossa experiência quotidiana. Esta atitude está na base de toda a rede de conhecimentos desenvolvida desde a Renascença pela ciência ocidental. Foi somente com o advento da microfísica que a fronteira entre observador e observado se esfumou um pouco. O mundo objectivo já não é tão objectivo como parecia pouco tempo antes.



No vasto domínio da experiência humana, a ciência ocupa incontestavelmente um lugar de destaque. É apontada como a responsável pelo prodigioso progresso das sociedades mais desenvolvidas e cada vez mais ocupa um lugar mítico no imaginário das pessoas. E se atendermos ao progressivo afastamento da prática científica da vida quotidiana e à auréola de mistério que envolve os seus praticantes, então podemos dizer que a ciência cada vez mais ocupa na nossa sociedade o lugar dos feiticeiros nas sociedades primitivas: confiamos cegamente nas suas práticas sem contudo as compreender adequadamente. Ela povoa cada vez mais o nosso quotidiano, cada vez nos tornamos mais dependentes das suas descobertas e cada vez mais difícil se torna a compreensão dos seus procedimentos. Utilizamos transistores e lasers sem percebermos o que é a mecânica quântica, utilizamos os satélites nas comunicações audiovisuais sem sabermos que é devido à teoria da relatividade que eles se mantém em órbitas geoestacionárias.
Vamos pois tentar, em primeiro lugar, compreender o que é o conhecimento científico, tendo em conta que a ciência é hoje uma realidade complexa e multifacetada, onde dificilmente se descobre uma unidade.

Existem, no entanto, um certo número de atributos ou características que normalmente associamos à ciência: ela parte da crença num universo ordenado, sujeito a leis acessíveis à razão; pretende encontrar as causas ocultas dos fenômenos visíveis, através de teorias que são submetidas ao crivo da experiência; as suas explicações procuram ser objetivas, isentas de emoções, visando o real tal como ele é. Habituámo-nos a aceitar como naturais e credíveis as suas explicações para os mais variados problemas (mesmo que não compreendamos o alcance dessas explicações) e, naturalmente, consideramos desprovidas de rigor e menos legítimas as respostas dadas pela feitiçaria, pelas religiões, pelos misticismos (embora a atitude que temos para com a ciência, muito tenha de mítico-religioso). Todavia, a importância que hoje damos à ciência e aquilo que hoje se considera como sendo ciência, é o resultado de um longo processo evolutivo que tem as suas raízes históricas no pensamento mítico-religioso, e que traduz o modo como o homem ocidental se relaciona com o mundo à sua volta. Em certo sentido, podemos mesmo dizer que as características da ciência acabam por se clarificar no confronto com essas atitudes mitico-religiosas e face ao contexto cultural em que ela se foi afirmando historicamente (cf. texto de F. Jacob, Ciência e mito: características da ciência).

Nos séculos anteriores era relativamente fácil aos homens do saber dominar todas as áreas do conhecimento. Platão ou Aristóteles eram detentores de um saber tão diversificado que englobava os conhecimentos da época sobre a Matemática, a Física, a Psicologia, a Metafísica, a Literatura, etc. O mesmo acontecia, sem grandes alterações, na Idade Moderna. Só a partir sobretudo do séc. XIX, e sob o impulso da industrialização, assiste-se a uma progressiva fragmentação do saber: na constante busca da novidade e da descoberta, vai-se especializando a tal ponto que dentro da mesma área pode haver tantas especializações que tornam impossível uma visão de conjunto dos problemas em questão. Porém os riscos que daí advêm são grandes e cada vez mais se sente hoje a necessidade de grandes sínteses integradoras destes saberes dispersos (cf. texto de L. Geymonat, A especialização do saber científico).

Essas sínteses deveriam aproximar não só os saberes da mesma área, mas também e sobretudo os saberes mais voltados para as aplicações técnicas dos saberes que constituem habitualmente a chamada "cultura humanística". Em suma, é necessário o diálogo entre os engenheiros e os filósofos, entre os economistas e os sociólogos, entre os matemáticos e os psicólogos, na compreensão da especificidade de cada saber, aliando o tratamento especializado das chamadas "ciências exactas" com a visão globalizante dos problemas caraterístico das "ciências humanas" (cf. texto de Isabelle Stengers,
A ciência pode ser descrita como um jogo a dois parceiros: trata-se de adivinhar o comportamento duma realidade distinta de nós, insubmissa tanto às nossas crenças e ambições como às nossas esperanças. 



A filosofia tem desempenhado um papel determinante na clarificação de alguns problemas que surgem no decurso da prática científica. É a própria ciência que recorre à filosofia na tentativa de encontrar pela via da reflexão e do debate, resposta para os seus problemas. Mas o saber científico enquanto atitude e enquanto mentalidade caracterizada da cultura ocidental, implica da parte de toda a sociedade uma tomada de consciência daquilo que é a própria ciência e do que são as conseqüências dos seus procedimentos e aplicações práticas. E sendo verdade que cada vez mais o cidadão comum tem mais dificuldade em compreender o que é o domínio da ciência, quer devido à sua progressiva especialização quer devido à abstração crescente das suas abordagens, por isso mesmo se impõe a necessidade de pensar sobre os seus limites e as suas práticas.

Sendo a nossa sociedade tão fortemente dependente das descobertas científicas, torna-se pois necessário formular perguntas que equacionem a relação da ciência com a sociedade, e mais concretamente sobre o papel que essa ciência desempenha na vida das pessoas. É que apesar de vermos constantemente o nosso quotidiano invadido por produtos derivados das descobertas científicas, não é menos certo que a ciência não pode resolver todos os problemas que se colocam ao Homem. Não nos podemos pois iludir relativamente às potencialidades da ciência; devemos ter consciência dos seus limites, daquilo que ela pode ou não pode dar à sociedade (cf. texto de B. Sousa Santos, Um discurso sobre as ciências).

Embora a dependência da nossa cultura face à ciência seja cada vez maior, não deixa porém de ser também verdade que o conhecimento que dela temos diminui na mesma proporção. É certo que o mundo do cientista se afasta cada vez mais do nosso quotidiano, e a progressiva especialização dos saberes implica abordagens progressivamente mais elaboradas, só acessíveis a uma minoria. (cf. texto de Alexandre Magro, O estranho mundo da ciência). Porém não podemos esquecer que a ciência é um produto cultural, sendo portanto necessário um crescente trabalho de divulgação científica, que assegure ao grande público um conjunto de referências científicas gerais, permitindo que ele se possa orientar melhor no mundo contemporâneo, protegendo-se de possíveis abusos ideológicos (cf. texto de J. Bronowski, Referências científicas e referências culturais).

Fruto de um desconhecimento do que constitui a prática e as possibilidades da ciência, usualmente ela tem sido vista como a solução para todos os males, à semelhança de um deus que age de forma misteriosa. Ao longo do nosso século esta firme crença nas suas potencialidades não parou de aumentar e ela foi associada aos grandes sucessos da energia barata, do aumento da produção alimentar, da longevidade e do aumento da qualidade de vida resultantes dos grandes sucessos da medicina. Mas esta imagem risonha cedo mostrou o seu reverso e hoje, cada vez mais, a ciência tem sido associada a tudo que contribui para destruir a harmonia que existia entre o homem e a natureza (cf. texto de Rui Cardoso, Ciência: da esperança à desilusão).
Vários fatores contribuíram para esta alteração de atitude. O mais evidente, talvez, é a crescente degradação do ambiente devido à aplicação tecnológica e industrial dos produtos da investigação científica (cf. texto de H. Reeves, Desenvolvimento tecnológico e preocupações ecológicas). Todavia, o problema não seria apenas uma questão de aplicação da ciência por parte dos detentores do poder econômico: na própria ciência, certos pensadores vislumbram uma indisfarçavel vontade de domínio sobre a natureza (cf. texto de I. Prigogine e I. Stengers, Ciência: a vontade de poder disfarçada de vontade de saber). Esta questão não pode ser dissociada do problema das relações entre ciência, ética e política.

Se por um lado as recentes investigações no campo da ciência fazem-nos temer o pior, existindo uma certa tendência para fazer do cientista o bode expiatório de todos os males da humanidade (cf. texto de Bronowski, O cientista acusado), por outro lado, felizmente, a opinião pública tem-se tornado progressivamente mais consciente e tem cada vez mais uma voz ativa nas decisões sobre a aplicação dos conhecimentos. Porém não podemos apenas pensar na ciência como uma propriedade e privilégio da cultura ocidental e, pelos vistos, as grandes descobertas da ciência não se têm traduzido numa melhoria global da qualidade de vida da humanidade em geral. A grande lição a tirar dos progressivos avanços científicos e tecnológicos deve-se traduzir numa profunda humildade e espírito crítico perante esses domínios. Estas questões merecem a atenção de responsáveis políticos como, por exemplo, o presidente da UNESCO (cf. entrevista de Federico Mayor Zaragoza, Ciência e desenvolvimento).

Parece-nos claro também que é urgente um amplo debate sobre os limites éticos que devemos colocar à ciência. Com efeito, não cabe apenas aos cientistas ou aos políticos estabelecer as normas orientadoras da prática científica. Cabe a todos nós, cidadãos que terão que conviver com o produto das aplicações científicas, o papel de participar ativamente na definição do que consideramos bem ou mal do ponto de vista ético. E no campo das biotecnologias e da engenharia genética, muitos são os campos onde a polêmica se instala. Como por vezes a fronteira entre o que é eticamente aceitável ou condenável nem sempre é fácil de traçar, resta-nos apelar para a responsabilidade das pessoas envolvidas na tomada de decisões, convictos de que estas só serão acertadas se houver uma consciência clara dos riscos envolvidos, e uma preocupação em ouvir toda a comunidade interessada na definição do melhor caminho para todos (cf. texto de Jacques Delors, O primado da ética). Neste debate, as opiniões dos próprios cientistas merecem particular atenção, pois elas representam o pensamento daqueles que mais de perto lidam com os problemas inerentes à investigação científica (cf. texto: Os cientistas perante a ética).
Se são evidentes os riscos mais ou menos diretamente relacionados com a ciência e os seus produtos, não podemos deixar de acentuar também os seus aspectos positivos. Mais uma vez, o mal da poluição, do subdesenvolvimento, do esbanjamento de recursos naturais, do aumento do fosso entre ricos e pobres pode não estar na ciência e na técnica mas na sua aplicação. Se formos a ver bem, para começar, num mundo dominado por paixões políticas, por fundamentalismos, racismos e xenofobias, um pouco mais de frieza e objetividade científicas viriam a calhar (cf. texto de François Jacob, Espírito científico e fanatismo). 


Estamos agora em condições de ter da actividade científica uma visão mais esclarecida. Podemos agora mais facilmente compreender as potencialidades da ciência e os seus limites, aquilo que ela pode ou não pode, deve ou não deve fazer. E se ela pode definir-se como a "organização do nosso conhecimento de tal modo que se apodera de uma parte cada vez mais considerável do potencial oculto da natureza", tal só é possível através da elaboração cuidadosa de teorias que pacientemente terão que ser submetidas à experimentação, na convicção porém de que as verdades conseguidas não passam de conjecturas cuja validade depende do acordo que mantêm com a realidade (cf. O estatuto do conhecimento científico). Por isso resta-nos acreditar nas possibilidades da ciência, convictos de que ela é um produto humano, e como tal, falível. Os modelos teóricos que os cientistas vão elaborando terão então que ser vistos como uma das formas possíveis de descrever a realidade e não a única (cf. Os grandes mitos, As respostas dos filósofos e Ontologias da contemporaneidade), pois mesmo que esses modelos se tornem progressivamente mais completos, não deixam porém de ser provisórios e falíveis e o progresso científico encarregar-se-á de o provar: as leis da gravitação universal de Newton mostraram-se válidas durante duzentos anos, mas a teoria da relatividade de Einstein mostrou as suas limitações e falibilidade (cf. texto de Bronowski, Ciência e realidade). 
A ciência não pode responder a todas as interrogações que se colocam à Humanidade. A satisfação das necessidades de paz, de Justiça, de felicidade releva de escolhas e não do conhecimento científico.
Evry Schatzman


Referências bibliográficas

J. Wahl, As Filosofias da Existência, Lisboa, Europa - América, p. 20-29.
Ludovico Geymonat, Elementos de Filosofia da Ciência, pp. 50-53.
François Jacob, O Jogo dos Possíveis, pp. 25-31.