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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Artigos: Diálogos Filosóficos sobre Conflito Moral



Eduardo Portella oferece um “banquete”. O local do encontro são os Champs Èlysses, atual residência do ex-ministro. A data, 18 de junho, é fixada pelo aniversariante. Célia Portella tem cuidado especial com o cardápio e a lista dos convidados pois não se trata de um banquete qualquer e sim de um “Symposion platônico”. No “menu” esta incluído um Discurso sobre a Moralidade, atendendo um pedido do homenageado. Durante séculos não houve “elogio ao amor” comparável. Ao reunir Sófocles, Aristóteles, Kant, Hegel, Piaget, Kohlberg e obviamente Habernas. Portella sugere retomar, neste  novo “Symposium”, a questão da moralidade sob novas óticas, sem romper a tradição socrática. Segue aqui o relato fiel desse memorável banquete.

Valendo-me do exemplo dado por Platão, sugiro que concentremos nossos diálogos num único tema: o conflito moral. Trata-se de um tema de especial interesse do nosso homenageado, preocupado em desenvolver, juntamente com o seu amigo Apel, uma nova ética discursiva. O Elogio ao Amor, feito durante o banquete em casa de Aghaton, forneceu os fundamentos para a discussão sobre Moralidade. A amizade que nos une foi um dos critérios que norteou a seleção dos presentes. A afinidade eletiva em torno do tema proposto, o critério definitivo.

A luz do tema proposto, pensei logo em Sófocles. Ninguém melhor do que ele para por em cena um conflito moral com fim trágico. Aristóteles, seu conterrâneo, retomou, como é do conhecimento de todos, a reflexão sobre o bem, o belo e o verdadeiro, integrantes do “Elogio ao Amor”, em sua Ética de Nicomaco. Nessa falou-nos da felicidade e justiça como ingredientes da moralidade e fez o elogio a temperança, virtude moral que se adquire com a experiência orientada pela razão. Por isso mesmo, sua reflexões sobre a razão pratica de certa forma completa e contradiz o pensamento dos seus colegas gregos. Sua tese do “imperativo categórico” e da moralidade baseada na autonomia do individuo e na razão, alocou a questão da moralidade na vontade legisladora do sujeito espistemico livre, cuja ação se orienta no principio moral da justiça, generalizável, segundo ele a todos os seres racionais. Com essa concepção revolucionaria da moralidade, o meu amigo entra, a meu ver, em conflito com a lei da polis grega e do Estado prussiano. Hegel, que esta aqui do meu lado que o diga. Enquanto admirador e critico de Kant sublinhou a polaridade entre “Moralitat” e “Stitlichckeit”, ou se assim o quiserem, entre a consciência individual e realidade social, dialetizando-a. Ao tomar a palavra terá oportunidade de elucidar seu ponto de vista. Finalmente, fiz questão da presença de Piaget e Kohlberg. 

Como é do conhecimento de todos, Kohlberg, alem ed amigo e contemporâneo, é o autor que teve enorme influencia sobre a formulação Ética Discursiva de nosso homenageado. Piaget, por sua vez, foi o pai intelectual de Kohlberg, transpondo a discussão sobre a moralidade do plano filosófico para o plano da pesquisa empírica. Todos conhecemos seus trabalhos sobre a gênese dos princípios morais que orientam a ação na criança. Kohlberg deu continuidade a esse trabalho e desenvolveu o instrumentário metodológico e empírico, capaz de discriminar seis estágios progressivos da moralidade. O conflito moral por ele idealizado ocupou nos EUA dos anos 70 mais de 50% das publicações psicológicas. Habernas, o homenageado desta noite, dispensa aqui maiores comentários. Terá tempo suficiente para discursar. Não convidei outros especialistas do assunto, entre os quais muitos colegas americanos, para manter a intimidade e a descontração do grupo. 

Feitas essas observações gerais, passo a palavra a Sófocles.

Sófocles

Basta recorrer a mitologia grega. A receita é fácil: utilizo-me da tragédia como forma literária. Darei destaque neste drama aos filhos de Édipo com Jocasta: Antígona, Ismênia, Eteocles, Polinice. Creio que sua relação com Creonte, o tirano de Tebas, fornece excelente material para conflito, se lembrarmos que Creonte é irmão de Jocasta, cunhado e tio de Édipo, como é tio dos filhos de Édipo, a quem sucedeu no trono.
Explicitado o local dos acontecimento, esclareço ainda as circunstancias.
Os irmãos de Antígona, Eteocles e Polinice, lutam em campos opostos, na entrada de Tebas: Eteocles a favor, Polinice contra Creonte. Creonte decide prestar todas as homenagens a Eteocles, assegurando-lhe um enterro conforme aos costumes da cidade. Antígona propõe a irmã, enterra Polinice , conforme a lei da familia, dos deuses, contrariando a proibição de Creonte, Ismênia lembra-a do castigo anunciando: quem enterrar Polinice contra a vontade de Creonte será punido com a morte. Antígona não considera as advertências da irmã e executa o funeral de Polinice. Um guarda anuncia o acontecido a Creonte. Este da ordens para trazer a culpada. Enquanto isso o coro dos velhos reflete sobre a natureza humana, dilacerada entre dois sistemas de valor, a lei da familia e a lei da polis. O guarda entra com Antígona, deixando-a a sos com Creonte. Antígona não nega o feito. Não reconhece em Creonte a autoridade da lei. Nada mais fácil para Creonte que condenar Antígona é sua sobrinha. Para complicar, o filho de Creonte busca apoio moral junto a Ismênia, sem obtê-lo. Ismênia defende a ação da irmã. Creonte considera ambas loucas. Procura o apoio de Hêmon, seu filho, que igualmente contesta a legitimidade de condenar Antígona a morte. O corifeu e o coro advertem Creonte sobre o abuso do poder, sugerindo que considere também a lei da familia ou dos deuses. Alegando os interesses da polis e a necessidade do respeito as suas leis, Antígona é enclausurada numa cela subterrânea, para que morra de fome e sede. O coro e o corifeu ouvem seu lamento, o desespero de morrer antes de ter conhecido os prazeres da vida. O sábio cego dirigi-se diretamente a Creonte, criticando sua decisão. Sua vontade de tirano não representa a lei da cidade mas a desrazao. A lei da cidade não pode ignorar a lei do sangue e da familia. Creonte resiste, se opõe aos argumentos do sábio, tem terror em ceder e revistar sua decisão, mas acaba se convencendo do seu erro. A sorte já foi consumada, a tragédia concretizada: Hêmon, sabendo do destino da noiva, mata-se diante do seu tumulo. Eurídice recebe a noticia da morte dão filho, segue o seu exemplo. Com o filho morto no braço Creonte se defronta com a esposa desfalecida. Chegou sua vez de lastimar-se, de desejar a própria morte, pois a vida lhe será castigo. Nenhum mortal escapa do seu destino, nenhum mortal consegue evitar o sofrimento que os deuses lhe reservam. Os orgulhosos recebem por suas grandes palavras o troco sob forma de golpes da sorte.
Somente ao longo dos anos eles aprenderão a ser sábios”
Seria essa minha contribuição para o debate.

Aristóteles

Estou plenamente de acordo com Sófocles quanto aos fundamentos da questão moral: seu objetivo central é a felicidade dos homens, seu instrumento a “sabedoria”. Ou, na minha terminologia, a prudência. Para na molesta-los com definições, diria que Tirésias representa, na peça de Sófocles, a sabedoria, não a prudência. Essa pressupõe experiência e ação. Por isso, a sabedoria de Tirésias não pode ajudar a Creonte na decisão. Creonte, sim. Defrontava-se com um conflito moral duplo: o conflito entre duas leis as quais devia lealdade e o conflito entre reflexão e ação. Tirésias, com sua sabedoria reforçou a reflexão, necessária para qualquer decisão. E Creonte, isso precisa ser dito em sua defesa, não se fechou a voz da razão. Reconheceu seu erro e procurou corrigi-lo. Lamentavelmente, tarde demais. O saber e a reflexão teórica sobre um conflito moral são insuficientes no momento da pratica, ou seja, da opção por uma ou outra alternativa de ação, em favor de uma “lei”. Na minha opinião, quem viveu o maior conflito moral nesta tragédia foi Creonte. O trágico desse personagem se encontra justamente no fato de ele ter ouvido todos os pontos de vista, de ter se deixado demover de sua decisão inicial, tomada em nome da lei da cidade, reconhecendo o ponto de vista contrario, representa por Antígona. O drama de Creonte consistiu no fato de a sabedoria, por si so, não o proteger do erro. Este consistiu em ter agido precipitadamente, condenando Antígona. Somente então percebeu que perdera o que mais importa ao seu humano, a vida. Perdeu a razão de ser sua própria vida, perdendo a vida de Hêmon e Eurídice. E perdeu a razão de ser rei e tirano, graças a contestação e morre da nova geração de tebanos, encarnada por seu filho e suas sobrinhas, de cuja legitimidade precisava, para validar a lei da polis. Faltou-lhe prudência, ou seja, experiência de vida associada a sabedoria. Creonte foi vitima dessa falta de prudência. Creonte agiu e errou, por isso sofreu as conseqüências de sua ação e adquiriu, dolorosamente, experiência. Creonte agiu precipitadamente. Mas ele foi menos implacável que Antígona. Ismênia era mulher, portanto uma mente infantil, pouco sabia. O coro entende das leis gerais, mas não de sua aplicação no caso singular. Tirésias, com sua sabedoria consegue demover Creonte de sua posição extrema. Apesar da lei da polis lhe dar razão, procura uma solução mediadora, encontra uma posição mediana, corrige seu extremismo, faz valer a temperança. Creonte transformou-se, enquanto agia, num homem sábio e prudente, encontrou o “meio”, evitou os extremos.         O tirano abatido e amargurado, derrotado pelo destino, agora é homem moralmente competente, por ter adquirido prudência e temperança, produtos da experiência de vida, conseqüência de ação.
Lamento, se me estendo demais. Mas creio que Antígona também merece algumas palavras. Não sei se Sófocles teve intenção de situar nesse personagem da tragédia o conflito moral central. Na minha opinião, esse personagem tem valor moral inferior ao de Creonte, apesar de sua aparente nobreza. Antígona também esta dilacerada, tendo consciência da existência de duas leis contrarias e excludentes. Enquanto mulher, que nós gregos, colocamos primordialmente no oikos e não na polis, ela obviamente agiu corretamente. Defendeu a lei do sangue, ou como muitos preferem, a lei natural. Foi mais conservadora e mais inflexível que Creonte. Ao fixar-se na lei do sangue contrariou essa própria lei, condenando-se a morte. Tinha conhecimento da lei da polis. Ao agir como agiu, questionou sua validade. Antígona menosprezou a lei da cidade e as advertências feitas em seu nome por Ismênia, e Creonte. Agiu, conforme a lei dos oikos e do sangue, enterrando o irmão Polinice. Com seu ato, Antígona ameaçou de morte todos aqueles que lhe queriam bem: Ismênia, Hêmon e Eurídice.
Antígona optou conscientemente pela morte, cortando-se, assim, toda e qualquer possibilidade de realização moral, de obtenção de felicidade. Também ela, como Creonte, agiu precipitadamente, sem refletir. Somente depois de definida sua morte, se da conta do que esta perdendo com a vida: toda e qualquer chance de realização e felicidade. Ao enterrar o irmão, agiu, movida não pela razão mas pela emoção. Agiu precipitadamente. Não teve tempo nem oportunidade de virar prudente. Mas do ponto de vista moral, foi o personagem que viveu o menor conflito moral.

Kant

Eu defendo, como Aristóteles, a vida como o principio moral supremo. Toda ação humana deve orientar-se no sentido da preservação da vida. Creonte foi o primeiro a desrespeitar, condenando Antígona a morte. Ele poderá objetar que Antígona não lhe deixara opção, ao enterrar o irmão, contra sua vontade. E mais, Creonte enquanto “vontade  legisladora”, enquanto homem dotado de razão e poder, enquanto cidadão da polis e seu representante supremo, tinha condições de adaptar-se as leis, agindo segundo sua própria consciência moral. A fraqueza do personagem fica patente quando busca respaldo para sua decisão em outros dois personagens, igualmente fracos, ou quando alega a força da lei da polis. Creio que Sófocles traçou muito bem o perfil desse tirano. Sua força se baseia no poder que concentra em suas mãos, que lhe conferem as leis da polis. Não faz uso da razão. Essa somente passa a pensar em sua decisão, depois de lembrado pelo sábio, um homem com traços divinos como Tirésias, que já transcendeu as fronteiras do bem e do mal. Decididamente, minha simpatia não esta com Creonte. Ouso afirmar que ele não “sofreu” nenhum conflito moral prévio. Creonte “sofreu” as conseqüências praticas de suas ações irrefletidas. Admito que essa sofrimento o tenha levado a refletir mais, antes de agir e a ouvir a voz interna da razão.
Apesar de ter, como meu precursor e mestre Aristóteles, certas reservas quanto ao sexo feminino, não acreditando que as mulheres possam ser seres racionais comparável aos homens, faço uma exceção no caso de Antígona. Avaliando friamente sua ação, a luz dos critérios da razão, eu diria que seu comportamento moral foi decidido superior aos demais. Pois Antígona foi a única que agiu com pleno conhecimento de causa. A revolta de Antígona contra Creonte, e por extensão contra a polis, tem no tratamento injusto que Creonte da aos seus dois irmãos. Concordo com Aristóteles na forma, mas não na substancia de que Antígona não viveu, um conflito moral. Sua consciência moral, impregnada de justiça, impôs-lhe, como um imperativo categórico. Mas essa opção não foi ditada por uma paixão cega, e sim por um principio moral universal, que independe da experiência e se calca na razão.

Hegel

No meu parecer, não faz sentido atribuir a um ou outro personagem do drama de Sófocles uma posição superior ou inferior em uma suposta escala da moralidade. O conflito moral não se esgota na consciência moral individual, necessariamente subjetiva. A consciência moral somente atinge sua realização, a Sittlichkeit ou corpo social. A primeira nos da conta da consciência moral subjetiva em sua gênese, a segunda caracteriza o resultado, quando a consciência moral se reconhece como parte integrante de um sistema de leis e princípios morais objetivados. Kant chamou esse sistema de o sistema dos costumes. Prefiro o termo “Sittlichkeit”, o qual mantém a conotação kantiana do sistema de leis, sem abrir mão da dimensão da moralidade, enquanto consciência moral subjetiva que assume um compromisso com o todo objetivado, do qual se compreende como emanação.
Peço desculpa se fui abstrato e genérico. Certamente poderei explicitar melhor o que pretendo dizer, se seguir o exemplo dos meus interlocutores, reformulando o meu pensamento com auxilio dos elementos e personagens oferecidos por Sófocles neste drama de Antígona. Discordo integralmente da interpretação dada por Kant e Aristóteles. Levando em conta o que disse anteriormente, acredito que ambos os personagens se dão conta da fragilidade de suas ações, enquanto atores isolados e mortais.
Os dois personagens principais da peça relacionam-se entre si, numa dialética implacável. Como nesta, Creonte e Antígona representam os extremos antagônicos de uma polaridade. A dialética desencadeada pela ação de um e outro personagem fez cada um dos dois passar por diferentes momentos. No final do movimento, as posições se inverteram: Creonte, o defensor da lei da polis, acaba sujeito a lei divina; e Antígona, já condenada, acaba questionando essa ultima, segundo a qual agiu, apelando para os cidadãos de Tebas, num esforço desesperado de ser compreendida segundo os paradigmas a lei da polis. Não aceita a dialética interna da lei divina, em nome da qual sepultou Polinice, pois reconhece que dessa vez caberá a ela ficar sem lamentações e sepultamento depois de morta.
Discordo de Aristóteles quando atribui a Antígona uma flexibilidade incondicional. Antígona, em seu lamento aos cidadãos de Tebas, reconhece seu erro, aceita a critica: o mortal que se arroga o direito de defender a lei da familia, emanação dos deuses, entra em choque com a lei da polis, feita pelos mortais, sem conquistar a piedade dos deuses. Discordo de Kant. Antígona não é a encarnação da justiça. O coro a condena por sua audácia: nenhum mortal sacode impunemente o pedestal divino da justiça. Para o coro, Antígona não representa a razão e sim o desejo.
Da mesma forma Creonte. Longe de representar a temperança e a prudência, no final do movimento dialético, como pretende Aristóteles, este personagem se desdobra em seu contrario. O tirano todo poderoso, mantenedor da ordem e justiça da polis, provocou com sua ação a inversão dos papeis. O juiz se transforma em vitima de sua própria justiça, homem sem lei e convicção. Onde havia orgulho, sobrou humildade, onde havia certeza, restaram duvidas. Discordo também, como já era de esperar, das criticas feitas pelo meu mestre Kant.
Neste movimento de inversão dos papeis e das perspectivas adotadas, em que Antígona apreende a perspectiva dos cidadãos da polis e Creonte se identifica com a postura de Antígona, ambos os personagens saem enriquecidos, compreendendo a polaridade e complexidade dos dois sistemas de valores, das duas formas da lei.    No caso da peça, a consciência moral dos dois sujeitos, personificados em Antígona e Creonte, é compreendida e incorporada pelos anciãos de Tebas. Lamenta igualmente os erros de Creonte, mas lembra que errar é humano.
A síntese proclamada  pelo coro se da na conciliação das duas leis, a da cidade e a dos deuses, da justiça humana e divina na singularidade, no momento preciso em que os sistemas de valores deixam de ser universais e se encarnam no particular num momento concreto de conflito que decorre de ações humanas especificas.
A tragédia de Antígona e Creonte mostra que essa síntese é impossível para a consciência moral individual.
Kant tem razão, quando afirma que a consciência moral esta calcada na justiça. Mas na medida em que consciência se relaciona a outra consciência e se mediatiza através da ação, buscando sua concretização no mundo, ela experimenta, vivencia o seu contrario. Por isso dou razão a Aristóteles, quando introduz a ação e a experiência como ingredientes indispensáveis da moralidade. Kant permanece abstrato e vazio quando condena a consciência moral a inação. A “Sittlichkeit”, representada pelo coro, esta mais próxima da concepção morsa aristotélica que da kantiana. Vejo no sujeito racional kantiano, confiante na vontade legisladora orientada pela razão, um precursor de Robespierre. Em vez da razão iluminista, liberada e emancipatoria, antecipo a razão enfurecida, sanguinária, auto-afirmativa, a critica que se materializou no período do Terror.

Kant

Permitam-me assumir a defesa da razão pratica e do sujeito iluminado, racional que defendo.

Aristóteles

Eu também gostaria de responder a Hegel.

Piaget

Graças a minha formação de biólogo, psicólogo e epistemologo, cientista, transporei o debate do plano filosófico, para o cientifico, assim como também Aristóteles se tomou a liberdade de transpor a sua analise do plano literário ao filosófico. Com Aristóteles compartilho a convicção de que a consciência moral é construída graças a ação e interação dos atores. Com Kant une-me na idéia do sujeito racional, cuja consciência moral se fundamenta na razão, no respeito a pessoa humana e na reciprocidade. E, Hegel forneceu-me em sua Fenomenologia do Espírito o modelo da psicogênese da moralidade infantil. A consciência moral, segundo o meus estudos detalhados, da interação, da maturação e dos processos de equilibração interna, não podendo, ser postulada como existente. A criança não constrói sua consciência moral é construída, a partir de dentro, processando o material posto a disposição pelo mundo externo. Nesta concepção aproximo-me de Hegel. Mas o que para ele é movimento do pensamento, enquanto conceito, de uma consciência subjetiva abstrata. Nosso estudo sobre o julgamento moral em crianças mostrou que estas passa, diferentes estágios da consciência moral.
No estagio da consciência moral autônoma, os nosso jovens são capazes de aceitar ou rejeitar um sistema de normas, justificando-o com argumentos racionais, intersubjetivos, reconhecidos pelos outros.
O conflito moral vivido pelos personagens principais da peça pode, ser retomado sob outra ótica. Se Antígona ainda tem como desculpa a sal pouca idade, isso não se aplica a Creonte. Antígona conhece as leis e normas que regem o funcionamento do seu grupo: a familia. Creonte conhece as leis e as normas que valem em seu grupo: cidadãos de Tebas. O problema dos dois personagens consiste no fato de a sociedade grega ter isolado as mulheres do oikos.
Quem demonstrou ter maturidade moral na peça foi Tirésias. Este sim, incorpora na peça aquilo que eu chamaria de autonomia moral plena.

Kohlberg

Como nosso anfitrião já antecipou, minhas pesquisas sobre a questão da moralidade procuram dar continuidade aos trabalhos iniciados por Piaget. A construção do pensamento e da moralidade se da por estágios. Os estágios inferiores cedem as superiores da organização cognitiva, mas são incorporados nesse que os sucedem. Concordo com Piaget quando atribui a Tirésias o estagio mais elevado da moralidade de todos os personagens da peça. Na minha terminologia que ainda lhes procurarei detalhar isso corresponde ao “stage six”.
Não quero transformar esse banquete em uma leitura dos meus trabalhos. Não divirjo de Piaget quando classifico Antígona e Creonte nos blocos dos atores convencionais. Um e outro personagem, pelo menos no começo do drama, orientam sua ação segundo normas convencionais pré-estabelecidas: Antígona, seguindo a lei da familia, Creonte a da cidade. Mas admito com Hegel que há uma evolução dos personagens no desenrolar da peça. Nossas pesquisas mostram que também durante a entrevista clinica, o dialogo do entrevistador com o entrevistado, há mudança de perspectivas, tomadas de consciência que podem resultar numa alteração da estrutura moral. Antígona, apesar de consultar-se somente com Ismênia e discutir com Creonte, acaba modificando sua posição. De um escalonamento inicial em minha escala moral passa assim do “stage three” ao “stage four”. Verdade é que o drama não lhe da tempo e espaço para desenvolver mais sua argumentação. O que dela ouvimos não nos permite classifica-la, alem do estagio quatro. Essa capacidade de assumir o ponto de vista do outro, já o distingue com um candidato ao “stage five”, pois se da conta da necessidade de preservar os direitos individuais face a lei da polis. Creio que nessa caracterização do conflito moral, Creonte ganha alguns pontos a mais em relação a classificação piagetiana, pelo simples fato de nosso instrumental ser mais diferenciado.
Analisemos ainda os dois personagens a luz das três óticas que sugeri. Tomando como ponto de partida o conteúdo intríseco do valor moral defendido, Antígona esta certa. Distingue Eteocles e lhe assegura, em nome da lei da polis, um enterro digno, respeitando assim também a lei da familia. O conflito entre os dois sistemas de lei so existe em caso de Polinice, pela aplicação arbitraria e tirânica da lei da cidade, por parte de Creonte.
Creonte justifica seu tratamento diferencial de Eteocles e Polinice: o defensor da polis não pode ser equiparado ao traidor. “o inimigo morto jamais é amigo”, alem disso, jamais se deve ceder a uma mulher, e não se aprende sabedoria dos mais jovens, mas sim dos mais velhos. A contra-argumentaçao de Tirésias merece ouvidos.
Enquanto Antígona não vê razão para ceder, estando convicta da superioridade da lei que orienta sua ação, Creonte tem suas razoes para condenar Antígona e as faz valer desde inicio, mas acaba cedendo aos argumentos de Tirésias e do corifeu, que lhe fornecem razoes convincentes para rever sua decisão original.
Antígona quanto Creonte são incapazes de exprimir o ponto de vista moral correto, pelo simples ato de cada um defender um ponto de vista isolado. Nossos personagens movimentam-se no interior da linguagem quotidiana comum, sem terem necessidade de examinar as aspirações de validade.
Os dois heróis da pela entram em coque frontal quando examinam os princípios ou normas que orientam a ação respectiva, rejeitando inclusive as justificativas apresentadas para legitima-las. Creonte questiona a validade da norma estabelecidas pela lei divina ou da familia, introduzida por Antígona, alegando a legitimidade e legalidade de sua norma, estabelecida por Creonte, mesmo estando em vigência.
A saída para esse conflito, que sem duvida cai no âmbito de uma teoria ética, no contexto da ética discursiva aqui esboçada, que Antígona e Creonte suspendessem o dialogo cotidiano, transformando-o temporariamente em um discurso pratico. Para concluir, no discurso pratico que estará fundamentando a nova Ética de Tebas ficara claro que justiça e solidariedade são os ingredientes indispensáveis de qualquer sistema de normas que considere os interesses de todos os membros ou participantes do discurso.

Aristóteles
Enquanto isso, o corpo de Polinice seria devorado pelos urubus. Os deuses incriminariam Antígona: a inação já a tornaria culpada em termos da lei dos oikos. Creonte ganharia tempo, a lei da polis teria prevalecido. Os erros de decisões anteriores em que agimos ou deixamos de agir no momento certo nos fazem adquirir experiência.
Kohlberg tem razão quando sublima a possibilidade de uma educação moral. Creio que a nossa única divergência se refere ao momento desse aprendizado.

Habernas
Concordo com suas objeções. Antígona morre, por precipitar, irrefletidamente. Da mesma maneira Creonte: precipitou-se em condenar Antígona, sem dar conta das conseqüências desastrosas que sua decisão traria para si e os seus.
Kant não gostou da interpretação de Hegel, quando esse fez alusão ao terrorismo intríseco a consciência moral subjetiva absoluta, convencida da sua pureza e correção. Tivemos recentemente na Republica Federal da Alemanha um episodio muito semelhante, que deve ser do conhecimento de todos por isso não vou mais me estender.

Kant
Não posso concordar com a identificação de Antígona com a historia alemã, vendo nelas a encarnação viva do imperativo categórico. Antígona não nenhum terrorista(como foi com a heroína da historia alemã), ao contrario, foi vitima. A, moça alemã, ao contrario, recorreu a violência, para fazer valer seu ponto de vista, matando dezenas de pessoas, em nome de um conceito de justiça permeado pelo ódio da luta de classes. Por um lado, repudio qualquer principio moral que se traduza em ações que transformem outras pessoas em mero instrumento da ação.     Neste sentido, acho que Piaget e Kohlberg respeitam melhor o espírito da minha ética, apesar do recurso ao empirismo, que eu preferia dispensar. Sempre tive simpatias pelas idéias democráticas desenvolvidas pelo meu contemporâneo Rosseau. Nesse sentido eu concordo com Habernas, em sua ética discursiva, uma solução viável de validação universal dos valores por mim postulados.

Hegel
Apesar, continuo achando que o imperativo categórico abstrai dos conteúdos e deveres da ação, talvez por temer mesclar-se com a vida, a ação, o trabalho do conceito, pretendendo ser um conceito puro, anterior a qualquer experiência. Pela razão, o universalismo abstrato me parece estéril, geral e o particular precisam movimentar-se, mergulhar em seus contrários e sintetizar-se no caso singular, concreto.
O conflito entre Antígona e Creonte significa essa concretização e singularizarão. A lei da familia e da cidade representavam, ambos o aspecto geral, enquanto Antígona e Creonte são sua manifestação particular.
Gostei da reformulação que Habernas da ao problema, confesso que não me ocorreu considera-la uma condição da possibilidade do conhecimento, como não me ocorreu pensar no ato lingüístico.

Habernas
Permitam-me apenas completar algumas reflexões sobre a ética discursiva por meio das quais penso ter avançado em um terreno ainda inexplorado. O conflito moral encenado não é uma fantasia louca do dramaturgo; ela é tirada, da mitologia, isto é das vivencias do povo grego, é uma produção coletiva, os conteúdos morais são fornecidos pela própria vida, não são produzidos pelos filósofos, mas trabalhados por eles.
A teoria da ação comunicativa, do dialogo e da comunidade comunicativa. Fatos e normas podem ter o mesmo tratamento no discurso. Mantivemos contudo a distinção entre discurso teórico e discurso pratico do mundo vivido.
É preciso obter a aceitação consensual da norma, considerando todos os efeitos colaterais e inesperados que ela venha produzir, uma vez posta em pratica, todos aqueles que participam do discurso pratico e todos os demais da comunidade comunicativa que mais cedo ou mais tarde possam ser atingidos pelos efeitos colaterais, produzidos pela aplicação da norma.

Portella
Já é tarde. Vou pedir um cafezinho.

Sartre
Me desculpem pela interrupção, mais fiquei sabendo desse symposium e resolvi comparecer. No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus, mas não a idéia de que a essência precede a existência. O homem possui uma natureza humana, esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim, pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. è também a isso que se chama a subjetividade, isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou que é consciente de se projetar no futuro.
Não quero me demorar por isso vou concluir. Embora os projetos humanos possam ser diferentes, pelo menos nenhum deles permanece inteiramente obscuro para mim, pois todos eles não passam de tentativas para transpor esses limites, ou para afasta-los, ou para nega-los, ou para se adaptar a eles.

Todos
Agradecemos pela sua explicação Sartre.

Portella
Obrigado meus senhores e minhas felicitações por suas inestimáveis contribuições.
Faremos o brinde ao aniversariante no salão.  

Existencialismo
 É um humanismo 

 O existencialismo é um humanismo  
A maior parte das pessoas que utilizam este termo ficariam bem embaraçadas se o quisessem justificar [...]
O que torna o caso complicado é que há duas espécies de existencialistas: de um lado há os que são cristãos, e entre eles incluirei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica; e de outro lado, os existencialistas ateus, entre os quais há que incluir Heidegger, os existencialistas franceses e a mim próprio. O que têm de comum é simplesmente o fato de admitirem que a existência precede a essência, ou, se quiser, que temos de partir da subjetividade.
Que é que em rigor se deve entender por isso?
Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo um livro ou um corta-papel: tal objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou de um conceito; ele reportou-se ao conceito do corta-papel, e igualmente a uma técnica prévia de produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita.
Assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos pois que, para o corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo - precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência.
Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos, trate-se duma doutrina como a de Descartes ou a de Leibniz, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim o homem individual realiza um certo conceito que está na inteligência divina.
No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus, mas não a idéia  de que a essência precede a existência. Tal idéia nos encontramo-la um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem antes de mais nada é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro.
O homem é antes de mais nada um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Porque o que entendemos vulgarmente por querer, é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama vontade.
Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. [...]
Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade. [...]
Antes de mais, que é que se entende por angústia?
O existencialista não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. Decerto, há muita gente que não vive em ansiedade; mas é nossa convicção que esses tais disfarçam a sua angústia, que a evitam [...]
E quando se fala de desamparo, expressão querida a Heidegger, queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas conseqüências. O existencialista opõe-se muito a um certo tipo de moral laica que gostaria de suprimir Deus com o menor dispêndio possível.
Quando à volta de 1880 alguns professores franceses tentaram construir uma moral laica, disseram mais ou menos isto: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa, vamos pois suprimi-la, mas torna-se necessário, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo policiado, que certos valores sejam tomados a sério e considerados como existindo a priori: é preciso que seja obrigado, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, ter filhos, etc., etc... Vamos pois aplicar-nos a uma pequena tarefa que permita mostrar que estes valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora, no fim de contas, Deus não exista.
Por outras palavras, e é essa, creio eu, a tendência de tudo o que se chama em França o radicalismo - nada será alterado, ainda que Deus não exista; reencontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e, quanto a Deus, teremos feito dele uma hipótese caduca que morrerá em sossego e por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens.
Dostoiewsky escreveu: “se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. [...]