A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) é um órgão governamental com múltiplas funções. Regulamenta, licencia e fiscaliza os usos da energia nuclear no país e, ao mesmo tempo, atua em atividades de fomento, de pesquisa e aplicação da tecnologia nuclear, além de ter sob seu controle instituições voltadas diretamente para atividades industriais. Observa-se, assim, que o seu leque de atribuições é diverso e é conflitante, visto que a ela cabe licenciar e fiscalizar atividades que ela mesma desempenha, fato que pode levar a situações de leniência ou de tensões internas.
A CNEN, para desempenhar as suas atividades, está dividida em três diretorias: a de radioproteção e segurança nuclear, a de pesquisa e desenvolvimento e a de gestão institucional. No escopo de sua atuação legal, as decisões da CNEN (resoluções), são tomadas pela sua Comissão Deliberativa (CD) que é formada pelo seu presidente, pelos três diretores e por um membro externo, nomeado pelo Governo Federal.
A década de 80 já demonstrava que a organização institucional da área nuclear no Brasil, concentrando nas mãos da CNEN todo um conjunto de atividades, algumas delas de natureza contraditória, merecia uma reavaliação. Isso ficava claro, por exemplo, quando da implementação do Programa Nuclear Autônomo da Marinha, em que a CNEN desempenhava papel central, tanto político, quanto técnico no desenvolvimento da tecnologia nuclear, apesar de sua responsabilidade legal pela regulamentação e verificação da segurança nessa mesma área nuclear.
A CNEN, para desempenhar as suas atividades, está dividida em três diretorias: a de radioproteção e segurança nuclear, a de pesquisa e desenvolvimento e a de gestão institucional. No escopo de sua atuação legal, as decisões da CNEN (resoluções), são tomadas pela sua Comissão Deliberativa (CD) que é formada pelo seu presidente, pelos três diretores e por um membro externo, nomeado pelo Governo Federal.
A década de 80 já demonstrava que a organização institucional da área nuclear no Brasil, concentrando nas mãos da CNEN todo um conjunto de atividades, algumas delas de natureza contraditória, merecia uma reavaliação. Isso ficava claro, por exemplo, quando da implementação do Programa Nuclear Autônomo da Marinha, em que a CNEN desempenhava papel central, tanto político, quanto técnico no desenvolvimento da tecnologia nuclear, apesar de sua responsabilidade legal pela regulamentação e verificação da segurança nessa mesma área nuclear.
Nessa época, a CNEN concentrou grande parte de seus esforços no programa nuclear autônomo, retirando pessoal técnico altamente qualificado e recursos financeiros da área de Licenciamento e Fiscalização.
Sobreveio o acidente de Goiânia e ficou visível que o modelo institucional centralizador de todas as atividades não se justificava e que a solução seria a criação de uma instituição dedicada unicamente à segurança nuclear, de forma a garantir efetivamente a proteção do público e meio ambiente dos possíveis efeitos indesejáveis dessa tecnologia. Apesar de todas as conseqüências do acidente de Goiânia, nada foi feito institucionalmente, sendo mantido o modelo de coexistência entre atividades intrinsecamente independentes.
Desde então, a situação se deteriorou consideravelmente e, hoje, a área de Segurança da CNEN, que envolve a regulamentação, o licenciamento e a fiscalização, não conta com técnicos em quantidade suficiente, não conta com infra-estrutura adequada e preparada para dar suporte às atividades de verificação 'in loco' da segurança das instalações e também não dispõe de ferramentas jurídicas adequadas para que as ações de fiscalização se façam respeitadas.
Além disso, problemas de natureza gerencial, advindas, entre outras razões, do imenso leque de atribuições da CNEN se agravam dia-a-dia, muitos deles deixando de ser circunstanciais e passando a ser estruturais.
Conforme destacado no início deste documento, a CNEN, órgão responsável pela regulamentação, licenciamento e fiscalização das instalações da área nuclear, é também responsável pelo Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Área Nuclear no Brasil, através de seus institutos de pesquisa, dentre eles: o IPEN em São Paulo, o CDTN em Minas e o IEN no Rio. A CNEN também controla as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), responsáveis por todas as etapas do ciclo combustível (as unidades de Resende, Poços de Caldas e Caetité) e a Nuclep, a maior indústria de equipamentos pesados do Brasil.
A CNEN, através dos seus Institutos de Pesquisas, dá apoio ao CTMSP, onde está sendo desenvolvido o projeto mais ambicioso na área nuclear, a construção de um reator para submarinos. Além disso, CNEN presta serviços freqüentes à Eletronuclear, operadora das usinas nucleares brasileiras... licenciadas e fiscalizadas pela CNEN! Esses fatos demonstram a interveniência da CNEN nos usos da energia nuclear, através de um conjunto de ações incompatíveis com a necessidade da independência da regulamentação, do licenciamento e da fiscalização, indispensável para a real garantia da segurança das instalações nucleares no Brasil.
Quem produz não fiscaliza. Esse conceito é básico e de domínio público, mas não contribuiu, até o momento, para que o problema fosse resolvido. Mesmo tendo o Brasil assinado e ratificado a Convenção Internacional de Segurança Nuclear e se comprometido a criar um Órgão Regulamentador, Licenciador e Fiscalizador, institucional e financeiramente independente, de forma a garantir a atuação plena de seus técnicos, nenhuma ação concreta foi feita até hoje no sentido de implementá-la.
Apesar do que foi exposto acima, pode-se argumentar que essa ainda não seria a hora de se criar esse órgão independente. A criação do mesmo poderia levar à perda do poder e peso político da Comissão Nacional de Energia Nuclear. A criação desse órgão poderia, na visão de alguns proprietários de instalações nucleares e radiativas, acarretar custos adicionais com a segurança e mesmo dificuldades técnicas adicionais. Finalmente, apesar da premissa básica de independência entre a produção e o uso da energia nuclear e o seu licenciamento e fiscalização, ainda podem existir aqueles que entendem que o atual modelo deva prevalecer.
No que se refere à CNEN atual, a desvinculação da área de segurança (regulamentação, licenciamento e fiscalização), poderá trazer alguns problemas, sim, tendo em vista o passivo de segurança dos seus institutos, com as suas instalações nucleares e radiativas, passivo esse que deve, e pode, ser reparado.
Por outro lado, no que diz respeito ao seu quadro técnico, a perda que a CNEN sofreria, numericamente, não seria significativa, visto que, de um total de cerca de dois mil e quinhentos, pouco mais de uma centena se dedica, efetivamente, à área de segurança. Da mesma forma, no que se refere à receita, a perda se restringiria a cerca de três milhões de reais por ano (taxas de licenciamento) de um total de quarenta milhões.
Em contrapartida a essas perdas mínimas, a CNEN ganhará em transparência ética, uma vez que poderá ter suas instalações para pesquisas experimentais e industriais sem nenhum choque com as atribuições conflitantes de licenciamento, sendo, portanto, eliminada a contradição, hoje existente, de licenciar instalações por ela construídas ou projetadas ou licenciar a quem a CNEN prestou serviços de engenharia.
A criação de um órgão licenciador independente permitirá à CNEN uma normalização institucional e sua consolidação nos segmentos industriais, de consultoria em engenharia, de prestação de serviços, de treinamento e outros, além de suas atividades de desenvolvimento científico e tecnológico, parte importante de sua tradição histórica.
No que toca o eventual temor de proprietários de instalações nucleares e radiativas, pode-se argumentar que sob o ponto de vista empresarial moderno, dentro da evolução da consciência para o aprimoramento ambiental e da segurança ocupacional e dentro dos marcos da cidadania, é justo que esses proprietários sejam considerados como os principais interessados na segurança de suas instalações e, conseqüentemente, na eficácia de um órgão regulamentador, licenciador e fiscalizador independente.
Finalmente, no que se refere à preocupação com a independência tecnológica e o desenvolvimento autônomo da área nuclear e, conseqüentemente, com a preservação do atual modelo da CNEN como a forma adequada para atingir esses objetivos, deve-se observar as mudanças de cenário ocorridas desde a década de 80, quando essa preocupação poderia ter a sua razão de ser. Desde então, o Brasil já dominou o ciclo do combustível e a Marinha está concluindo o primeiro reator de potência nacional. Também as tensões locais foram diluídas com a criação do Mercosul e da Agência Brasileiro Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).
Nada mais natural que o fortalecimento da área de segurança nuclear com a criação de um órgão licenciador independente, medida que garantirá menos sobressaltos com acidentes que, eventualmente, poderiam inviabilizar os usos da energia nuclear nas áreas industriais, médicas e de geração de energia, tão necessárias ao desenvolvimento nacional. Outra possível preocupação seria a de que a gestão desse novo órgão pudesse ser colocada sob a responsabilidade de profissional não identificado com os interesses nacionais, criando atritos para o desenvolvimento nuclear no Brasil. Este argumento tem pouca consistência, considerando que a designação para tal cargo é de responsabilidade da Presidência da República, como é, hoje, a nomeação do Presidente da CNEN. Qualquer nomeação deve estar voltada para o conjunto dos interesses positivos do País. Deve-se observar, também, que se pode propor que as decisões finais desse órgão sejam tomadas por um colegiado, no qual, teriam assento representantes de setores pertinentes da sociedade civil de forma que os interesses legítimos dessa sociedade, no que se refere aos usos da energia nuclear, sejam atendidos e... com segurança.
Se na década de 80 com o acidente de Goiânia ficou evidente a necessidad e da criação de um Órgão Licenciador Independente, agora o mesmo torna-se imprescindível e urgente para preservar os ganhos da área nuclear, minimizando os riscos de acidentes indesejáveis.
A Convenção Internacional de Segurança Nuclear e o seu não cumprimento
Apesar de tudo o que a lógica comum recomenda e que não foi feito (relatado nos tópicos anteriores), deve-se observar que o Brasil é signatário da Convenção Internacional de Segurança Nuclear. Através do Decreto n° 2648 de 1º de Julho de 1999, foi promulgado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Protocolo da Convenção de Segurança Nuclear, assinada em Viena em 20 de Setembro de 1994, aprovada por Decreto Legislativo Nº 4 de 22 de Janeiro de 1997, depositada pelo Governo Brasileiro em 4/3/1997 e passando a vigorar, para o Brasil, em 2 de Junho de 1997. O artigo primeiro do decreto estabelece que "a Convenção de Segurança Nuclear deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém".
O Decreto n° 2648 reconhece a necessidade de um Órgão Regulatório, em outras palavras, um Órgão Licenciador e Fiscalizador para atividades envolvendo as Usinas Nucleares, assim como estabelece instrumentos legais necessários para a sua constituição ao promulgar o Protocolo da Convenção de Segurança Nuclear.
Isto fica evidente no artigo 8° "Órgão Regulatório" da Convenção ao determinar que: 1) Cada Parte Contratante (o Brasil) estabelecerá ou designará um órgão regulatório, encarregado da implementação do arcabouço legislativo e regulatório referido no Artigo 7, e dotado de autoridade adequada, competência e recursos financeiros e humanos para desincumbir-se das responsabilidades a ele atribuídas; 2) Cada Parte Contratante tomará as medidas apropriadas para assegurar uma efetiva separação entre as funções do órgão regulatório e aquelas de qualquer outro órgão ou organização relacionado com a promoção ou utilização da energia nuclear.
O Artigo 8° deixa claro que a Comissão Nacional de Energia Nuclear não pode ser este órgão regulatório ao estabelecer a necessidade de separação das funções regulatórias daquelas de promoção, tendo em vista que a CNEN é responsável pelo desenvolvimento tecnológico da área nuclear, opera quatro reatores de pesquisa, dirige tres instituições de pesquisa com instalações experimentais do ciclo do combustível, controla as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), responsável pela indústrias do ciclo do combustível, presta serviços de engenharia para a Eletronuclear, empresa operadora das usinas nucleares brasileiras, para a INB e para a Marinha, atividades que se identificam claramente como de promoção ou utilização da energia nuclear. Resta, portanto, ao Governo Brasileiro, a criação do Órgão Regulatório, orientado pelos artigos 7° e 8° "Estrutura Legal e Regulatória" da Convenção Internacional de Segurança Nuclear.
O artigo 7° "Estrutura Legal e Regulatória" determina que: (1) Cada Parte Contratante estabelecerá e manterá uma estrutura legislativa e regulatória para governar a segurança das instalações nucleares; (2) A estrutura legal e regulatória disporá sobre: I) o estabelecimento de requisitos e regulamentações nacionais de segurança; II) um sistema de licenciamento para as instalações nucleares e a proibição de operação da instalação nuclear sem uma licença; III) um sistema de inspeção regulatória e avaliação de instalações nucleares para apurar o cumprimento de regulamentos aplicáveis e dos termos de licenças; IV) o cumprimento dos regulamentos aplicáveis e dos termos de licenças, incluindo suspensão, modificação ou revogação.
A Fábrica de Enriquecimento de Urânio das Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) é a instalação nuclear do ciclo do combustível mais importante para o país em termos de independência tecnológica na área nuclear. O domínio da tecnologia de enriquecimento insere o Brasil no clube fechadíssimo dos países que controlam a energia nuclear e ainda dos países que privilegiam as aplicações para fins exclusivamente pacíficos. Não se desconhece a importância do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) no desenvolvimento desta tecnologia e de que o CTMSP é um dos órgãos das Forças Armadas. No entanto, isto não implica que o Brasil se proponha a desenvolver aplicações bélicas.
Hoje existe um arcabouço legal, desde a Constituição Federal até os tratados internacionais, como por exemplo, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Tlatelolco, que estabelecem regimes de inspeções internacionais de materiais nucleares que assegura que as aplicações da energia nuclear sejam exclusivamente para fins pacíficos. Em particular, o Tratado de Tlatelolco, assinado pelo Brasil, estabelece a América Latina e o Caribe como a primeira zona livre de artefatos nucleares do mundo.
O papel do Órgão Regulatório Independente da área nuclear será o de garantir que a Fábrica de Enriquecimento de Urânio seja construída e operada sem riscos para os trabalhadores, para o público e para o meio ambiente, da mesma forma como será realizado para as demais instalações nucleares e radiativas do país.
Acrescenta-se a isto que o Órgão Regulatório será responsável pela coordenação das inspeções internacionais, de forma a garantir que as aplicações da energia nuclear sejam pacíficas, sem, no entanto, criar obstáculos ao desenvolvimento, assim como impedir que as inspeções extrapolem os limites dos acordos e não prejudiquem os interesses nacionais.
Sobreveio o acidente de Goiânia e ficou visível que o modelo institucional centralizador de todas as atividades não se justificava e que a solução seria a criação de uma instituição dedicada unicamente à segurança nuclear, de forma a garantir efetivamente a proteção do público e meio ambiente dos possíveis efeitos indesejáveis dessa tecnologia. Apesar de todas as conseqüências do acidente de Goiânia, nada foi feito institucionalmente, sendo mantido o modelo de coexistência entre atividades intrinsecamente independentes.
Desde então, a situação se deteriorou consideravelmente e, hoje, a área de Segurança da CNEN, que envolve a regulamentação, o licenciamento e a fiscalização, não conta com técnicos em quantidade suficiente, não conta com infra-estrutura adequada e preparada para dar suporte às atividades de verificação 'in loco' da segurança das instalações e também não dispõe de ferramentas jurídicas adequadas para que as ações de fiscalização se façam respeitadas.
Além disso, problemas de natureza gerencial, advindas, entre outras razões, do imenso leque de atribuições da CNEN se agravam dia-a-dia, muitos deles deixando de ser circunstanciais e passando a ser estruturais.
Conforme destacado no início deste documento, a CNEN, órgão responsável pela regulamentação, licenciamento e fiscalização das instalações da área nuclear, é também responsável pelo Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Área Nuclear no Brasil, através de seus institutos de pesquisa, dentre eles: o IPEN em São Paulo, o CDTN em Minas e o IEN no Rio. A CNEN também controla as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), responsáveis por todas as etapas do ciclo combustível (as unidades de Resende, Poços de Caldas e Caetité) e a Nuclep, a maior indústria de equipamentos pesados do Brasil.
A CNEN, através dos seus Institutos de Pesquisas, dá apoio ao CTMSP, onde está sendo desenvolvido o projeto mais ambicioso na área nuclear, a construção de um reator para submarinos. Além disso, CNEN presta serviços freqüentes à Eletronuclear, operadora das usinas nucleares brasileiras... licenciadas e fiscalizadas pela CNEN! Esses fatos demonstram a interveniência da CNEN nos usos da energia nuclear, através de um conjunto de ações incompatíveis com a necessidade da independência da regulamentação, do licenciamento e da fiscalização, indispensável para a real garantia da segurança das instalações nucleares no Brasil.
Quem produz não fiscaliza. Esse conceito é básico e de domínio público, mas não contribuiu, até o momento, para que o problema fosse resolvido. Mesmo tendo o Brasil assinado e ratificado a Convenção Internacional de Segurança Nuclear e se comprometido a criar um Órgão Regulamentador, Licenciador e Fiscalizador, institucional e financeiramente independente, de forma a garantir a atuação plena de seus técnicos, nenhuma ação concreta foi feita até hoje no sentido de implementá-la.
Apesar do que foi exposto acima, pode-se argumentar que essa ainda não seria a hora de se criar esse órgão independente. A criação do mesmo poderia levar à perda do poder e peso político da Comissão Nacional de Energia Nuclear. A criação desse órgão poderia, na visão de alguns proprietários de instalações nucleares e radiativas, acarretar custos adicionais com a segurança e mesmo dificuldades técnicas adicionais. Finalmente, apesar da premissa básica de independência entre a produção e o uso da energia nuclear e o seu licenciamento e fiscalização, ainda podem existir aqueles que entendem que o atual modelo deva prevalecer.
No que se refere à CNEN atual, a desvinculação da área de segurança (regulamentação, licenciamento e fiscalização), poderá trazer alguns problemas, sim, tendo em vista o passivo de segurança dos seus institutos, com as suas instalações nucleares e radiativas, passivo esse que deve, e pode, ser reparado.
Por outro lado, no que diz respeito ao seu quadro técnico, a perda que a CNEN sofreria, numericamente, não seria significativa, visto que, de um total de cerca de dois mil e quinhentos, pouco mais de uma centena se dedica, efetivamente, à área de segurança. Da mesma forma, no que se refere à receita, a perda se restringiria a cerca de três milhões de reais por ano (taxas de licenciamento) de um total de quarenta milhões.
Em contrapartida a essas perdas mínimas, a CNEN ganhará em transparência ética, uma vez que poderá ter suas instalações para pesquisas experimentais e industriais sem nenhum choque com as atribuições conflitantes de licenciamento, sendo, portanto, eliminada a contradição, hoje existente, de licenciar instalações por ela construídas ou projetadas ou licenciar a quem a CNEN prestou serviços de engenharia.
A criação de um órgão licenciador independente permitirá à CNEN uma normalização institucional e sua consolidação nos segmentos industriais, de consultoria em engenharia, de prestação de serviços, de treinamento e outros, além de suas atividades de desenvolvimento científico e tecnológico, parte importante de sua tradição histórica.
No que toca o eventual temor de proprietários de instalações nucleares e radiativas, pode-se argumentar que sob o ponto de vista empresarial moderno, dentro da evolução da consciência para o aprimoramento ambiental e da segurança ocupacional e dentro dos marcos da cidadania, é justo que esses proprietários sejam considerados como os principais interessados na segurança de suas instalações e, conseqüentemente, na eficácia de um órgão regulamentador, licenciador e fiscalizador independente.
Finalmente, no que se refere à preocupação com a independência tecnológica e o desenvolvimento autônomo da área nuclear e, conseqüentemente, com a preservação do atual modelo da CNEN como a forma adequada para atingir esses objetivos, deve-se observar as mudanças de cenário ocorridas desde a década de 80, quando essa preocupação poderia ter a sua razão de ser. Desde então, o Brasil já dominou o ciclo do combustível e a Marinha está concluindo o primeiro reator de potência nacional. Também as tensões locais foram diluídas com a criação do Mercosul e da Agência Brasileiro Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).
Nada mais natural que o fortalecimento da área de segurança nuclear com a criação de um órgão licenciador independente, medida que garantirá menos sobressaltos com acidentes que, eventualmente, poderiam inviabilizar os usos da energia nuclear nas áreas industriais, médicas e de geração de energia, tão necessárias ao desenvolvimento nacional. Outra possível preocupação seria a de que a gestão desse novo órgão pudesse ser colocada sob a responsabilidade de profissional não identificado com os interesses nacionais, criando atritos para o desenvolvimento nuclear no Brasil. Este argumento tem pouca consistência, considerando que a designação para tal cargo é de responsabilidade da Presidência da República, como é, hoje, a nomeação do Presidente da CNEN. Qualquer nomeação deve estar voltada para o conjunto dos interesses positivos do País. Deve-se observar, também, que se pode propor que as decisões finais desse órgão sejam tomadas por um colegiado, no qual, teriam assento representantes de setores pertinentes da sociedade civil de forma que os interesses legítimos dessa sociedade, no que se refere aos usos da energia nuclear, sejam atendidos e... com segurança.
Se na década de 80 com o acidente de Goiânia ficou evidente a necessidad e da criação de um Órgão Licenciador Independente, agora o mesmo torna-se imprescindível e urgente para preservar os ganhos da área nuclear, minimizando os riscos de acidentes indesejáveis.
A Convenção Internacional de Segurança Nuclear e o seu não cumprimento
Apesar de tudo o que a lógica comum recomenda e que não foi feito (relatado nos tópicos anteriores), deve-se observar que o Brasil é signatário da Convenção Internacional de Segurança Nuclear. Através do Decreto n° 2648 de 1º de Julho de 1999, foi promulgado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Protocolo da Convenção de Segurança Nuclear, assinada em Viena em 20 de Setembro de 1994, aprovada por Decreto Legislativo Nº 4 de 22 de Janeiro de 1997, depositada pelo Governo Brasileiro em 4/3/1997 e passando a vigorar, para o Brasil, em 2 de Junho de 1997. O artigo primeiro do decreto estabelece que "a Convenção de Segurança Nuclear deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém".
O Decreto n° 2648 reconhece a necessidade de um Órgão Regulatório, em outras palavras, um Órgão Licenciador e Fiscalizador para atividades envolvendo as Usinas Nucleares, assim como estabelece instrumentos legais necessários para a sua constituição ao promulgar o Protocolo da Convenção de Segurança Nuclear.
Isto fica evidente no artigo 8° "Órgão Regulatório" da Convenção ao determinar que: 1) Cada Parte Contratante (o Brasil) estabelecerá ou designará um órgão regulatório, encarregado da implementação do arcabouço legislativo e regulatório referido no Artigo 7, e dotado de autoridade adequada, competência e recursos financeiros e humanos para desincumbir-se das responsabilidades a ele atribuídas; 2) Cada Parte Contratante tomará as medidas apropriadas para assegurar uma efetiva separação entre as funções do órgão regulatório e aquelas de qualquer outro órgão ou organização relacionado com a promoção ou utilização da energia nuclear.
O Artigo 8° deixa claro que a Comissão Nacional de Energia Nuclear não pode ser este órgão regulatório ao estabelecer a necessidade de separação das funções regulatórias daquelas de promoção, tendo em vista que a CNEN é responsável pelo desenvolvimento tecnológico da área nuclear, opera quatro reatores de pesquisa, dirige tres instituições de pesquisa com instalações experimentais do ciclo do combustível, controla as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB), responsável pela indústrias do ciclo do combustível, presta serviços de engenharia para a Eletronuclear, empresa operadora das usinas nucleares brasileiras, para a INB e para a Marinha, atividades que se identificam claramente como de promoção ou utilização da energia nuclear. Resta, portanto, ao Governo Brasileiro, a criação do Órgão Regulatório, orientado pelos artigos 7° e 8° "Estrutura Legal e Regulatória" da Convenção Internacional de Segurança Nuclear.
O artigo 7° "Estrutura Legal e Regulatória" determina que: (1) Cada Parte Contratante estabelecerá e manterá uma estrutura legislativa e regulatória para governar a segurança das instalações nucleares; (2) A estrutura legal e regulatória disporá sobre: I) o estabelecimento de requisitos e regulamentações nacionais de segurança; II) um sistema de licenciamento para as instalações nucleares e a proibição de operação da instalação nuclear sem uma licença; III) um sistema de inspeção regulatória e avaliação de instalações nucleares para apurar o cumprimento de regulamentos aplicáveis e dos termos de licenças; IV) o cumprimento dos regulamentos aplicáveis e dos termos de licenças, incluindo suspensão, modificação ou revogação.
A Fábrica de Enriquecimento de Urânio das Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) é a instalação nuclear do ciclo do combustível mais importante para o país em termos de independência tecnológica na área nuclear. O domínio da tecnologia de enriquecimento insere o Brasil no clube fechadíssimo dos países que controlam a energia nuclear e ainda dos países que privilegiam as aplicações para fins exclusivamente pacíficos. Não se desconhece a importância do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) no desenvolvimento desta tecnologia e de que o CTMSP é um dos órgãos das Forças Armadas. No entanto, isto não implica que o Brasil se proponha a desenvolver aplicações bélicas.
Hoje existe um arcabouço legal, desde a Constituição Federal até os tratados internacionais, como por exemplo, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e o Tratado de Tlatelolco, que estabelecem regimes de inspeções internacionais de materiais nucleares que assegura que as aplicações da energia nuclear sejam exclusivamente para fins pacíficos. Em particular, o Tratado de Tlatelolco, assinado pelo Brasil, estabelece a América Latina e o Caribe como a primeira zona livre de artefatos nucleares do mundo.
O papel do Órgão Regulatório Independente da área nuclear será o de garantir que a Fábrica de Enriquecimento de Urânio seja construída e operada sem riscos para os trabalhadores, para o público e para o meio ambiente, da mesma forma como será realizado para as demais instalações nucleares e radiativas do país.
Acrescenta-se a isto que o Órgão Regulatório será responsável pela coordenação das inspeções internacionais, de forma a garantir que as aplicações da energia nuclear sejam pacíficas, sem, no entanto, criar obstáculos ao desenvolvimento, assim como impedir que as inspeções extrapolem os limites dos acordos e não prejudiquem os interesses nacionais.
Sidney Luiz Rabello - Engenheiro em Licenciamento e Segurança de Usinas Nucleares da Comissão Nacional de Energia Nuclear;Revista Eco 21, ano XV, Nº 98, janeiro/2005.