Diante de um público formado basicamente por pesquisadores e cientistas, o escritor moçambicano Mia Couto mostrou bom humor ao saudar o público presente à palestra de abertura do Seminário Internacional Determinantes Sociais da Saúde, Intersetorialidade e Equidade Social na América Latina. "Confesso estar completamente aterrorizado de vocês convidarem um poeta para fazer essa conferência. Foi ótimo eu ser apresentado como escritor, mas também como biólogo. Digo isso, pois também sou uma pessoa séria, não apenas escritor". Embalado pelos risos de uma plateia encantada, o autor expôs que seu intuito ali era mostrar a existência de mundos diversos que pensam a saúde e a doença e a vida e a morte de uma maneira absolutamente plural.
Mia contou que as pessoas sempre o questionam sobre como consegue compatibilizar biologia e literatura com ciência e poesia. Para ele não há essa espécie de dicotomia. Para exemplificar, disse para plateia que contaria duas histórias, que serviam para ele como respostas a essa questão. Uma delas aconteceu em 2008, em uma região no norte de Moçambique, enquanto trabalhava. Segundo ele, um dia, as duas horas da manhã uma pessoa veio bater em sua tenda inóspita dizendo que havia um homem morto do lado de fora. Sem piscar, Mia se levantou e no caminho perguntou: a pessoa morreu de que? Morreu como? E a resposta dita foi que havia sido morto por um leão. E ele perguntou: O leão ainda está por aqui? A resposta foi: sim, ele ainda está rondando por aqui.
“Naquele momento eu já não tinha mais vontade alguma de ver aquela pessoa. Voltei rapidamente para minha tenda e o ruído do zíper me mostrou que nada ali me protegia. Com minha pequena lanterna comecei a escrever. Não sabia exatamente o que estava escrevendo, mas aquele pequeno bloco de notas me conferiu abrigo, uma casa, eu estava me sentindo protegido. Assim lancei o livro Confissão da Leoa, que fala sobre a construção de uma narrativa da visão que temos de nós próprios em uma situação de defesa, onde procuramos um abrigo, uma espécie de casa, nem que seja construída apenas de maneira imaginária”, recordou.
No dia seguinte ao ocorrido, Mia foi convidado a acompanhar os caçadores que partiram para matar o leão. Ele admitiu que ao longo de seus 30 anos como biólogo viu muitos animais e esteve em muitas situações que, muitas vezes, não o impressionavam. Mas aquela era a primeira vez que ele fazia aquele percurso a pé. Naquele momento, ele andava por caminhos que eram territórios que o homem não comanda. Pois, segundo ele, o que o homem comanda tem uma espécie de assinatura – uma estrada, um trilho –, que marca aquela tomada de território, e aquele local não tinha absolutamente nada disso.
“Naquele momento, eu estava no território dos não humanos e quando enfrentei esse leão foi um momento fundador para mim, um abalo sísmico. Tirando a parte do medo, porque eu tinha medo, estava, de fato, aprendendo ali uma lição. Eu não conhecia o leão. Só se conhece o leão quando você está no território dele, onde ele reina, num território no qual nós não somos ninguém. Aquela espécie de hipnose que existe no olhar de um felino foi algo que me disse que eu fui à caça e fui caçado, mas fui caçado no sentido de ser surpreendido pela minha própria fragilidade e essa lição de humildade foi importantíssima para mim”, lembrou. Após contar as histórias, Mia falou sobre sua escolha pela biologia e admitiu que ela o deu uma espécie de renovada aptidão para estar despido de certezas. Segundo o escritor, ele não está na biologia a procura de certezas, e sim de interrogações.
“Eu quero renovar esse encontro com o enigma, com o lado do mistério e, acima de tudo, quero aprender outras linguagens. Hoje acho que percebo na fala de uma ave a fala daqueles que não falam. A ciência biológica me devolveu uma coisa fundamental para que eu tenha saúde. Afinal, estamos aqui falando de saúde. Para eu saber o meu tamanho é importante saber que eu só existo sendo outro, e sendo parte de algo bem maior. Assim, eu realcancei, eu recuperei a intimidade que havia perdido com criaturas que pareciam distantes. Esse grau de parentesco com os bichos e com as plantas foi fundamental para eu me encontrar. Eu, que construo histórias, me encontrei em um ‘eu próprio’, dentro de uma história que é a mais bela possível, a história da vida, a história do porque estamos aqui”, constatou ele.
Morreu de quem ou de que?
Mia Couto continuou brindando a plateia com a beleza de suas narrativas. Prosseguiu com mais uma história, afinal, como ele mesmo afirmou, “somos feitos de histórias assim como somos feitos de células”. O escritor falou sobre uma província no norte de Moçambique, chamada Niassa, onde também trabalhou por um tempo. Ele explicou que o povo local se reúne para uma cerimônia religiosa, organizada pelos sacerdotes – que também são líderes políticos –, e passam fome durante todo o ano para homenagear os macacos babuínos. Isso acontece porque eles acreditam que há muito tempo seus antepassados todos morreram afogados em uma lagoa e voltaram materializados nesses animais. “Para eles é um momento de retribuição, pois esses animais protegem um lugar sagrado. Então, é preciso mostrar essa gratidão”, contou.
Após contar a história dos costumes de Niassa, Mia explicou que nas regiões por onde anda, as pessoas fazem um questionamento que aqui no Brasil pode parecer estranho quando alguém morre. A pergunta é: “morreu de quem?” Ao invés de “morreu de que?”. “Morrer de alguém é uma coisa que faz muito sentido em um universo em que a fronteira da vida – o entendimento daquilo que é vida, que é morte, que é doença –, é algo completamente distinto. Nesse universo está ausente a dualidade que separa o somático, o psicológico, o corpo, a alma, o espírito e a matéria, tudo isso é ausente e não existe uma palavra para expressar a natureza. Por isso, quando se procuram as causas naturais de uma doença, surge algo estranho, pois não há sequer uma palavra para dizer isso”, definiu o escritor.
Segundo ele, a doença não se expressa por um “que” e sim por um “quem”. Enquanto nas sociedades modernas os médicos leem sinais, em Moçambique os terapeutas leem símbolos. Enquanto o Brasil, por exemplo, assume que trata doentes, em outra parte do mundo, em Moçambique, por exemplo, o que os terapeutas fazem é colocar a pessoa em diálogo com vozes ocultas que podem trazer a cura da doença. “Em Moçambique as pessoas não costumam se queixar de dor ao médico. Ela diz que “está a sentir o corpo”. O que ela quer dizer com isso é que seu corpo está falando, alertando para qualquer dissonância. O que determina o estado de saúde de uma pessoa são as agonias, as consonâncias, essa afinação que existe entre os vivos, os mortos e Deus. A doença é, ao mesmo tempo, um que e um quem. Eu realmente acredito que se pode morrer de alguém sim, e isso não é poesia”, lamentou.
A primeira vez que Mia Couto morreu de alguém, ele tinha apenas sete anos e viu seu pai chorar pela primeira vez. Este tinha recebido a notícia de que seu pai – avô de Mia –, tinha falecido. Segundo o escritor, ele nunca conheceu seus avós, que moravam do outro lado do oceano, mas a verdade é que esse desconhecido avô sempre habitou a casa e vivia de forma tão real quanto qualquer um dos presentes. Isso acontecia porque, na cabeceira da cama, o pai de Mia contava histórias de sua própria história. “O que me fascinava não era a qualidade das histórias, até mesmo porque não sou capaz de lembrar delas, mas o que não esqueço é sentimento de encantamento que essas histórias produziam em mim, uma doce embriaguez que me dissolvia em uma doçura”.
Se encaminhando para o fim da apresentação, Mia Couto questionou se suas histórias eram mesmo aquilo que a plateia esperava ouvir e explicou que o que ele quis dizer contando tudo aquilo é que a produção do encantamento que uma história pode produzir é muito maior do que qualquer tipo de entretenimento. “Vivemos de histórias desde que somos humanos. Na perspectiva dessa grande narrativa, por meio dessas histórias, atualmente se fala muito em redes. Essa rede social que é viver em uma narrativa, que é viver em história, é importantíssima pois nos confere identidade, nos dá aconchego. Então, quando alguém te contar uma história, como eu estou aqui contando, há uma mensagem que diz: “você é importante”. Essa é a confirmação de que contar histórias e receber histórias é, de fato, um ato de amor”.
Mia Couto lembrou que infelizmente as sociedades atuais são muito perseguidas por aquilo que têm de pior. O escritor fez questão de homenagear o Brasil – visto como exemplo em Moçambique –, por todas as conquistas nos últimos anos contra a injustiça e a iniquidade social. “Para terminar, eu acho que nós somos feitos de histórias, tal qual somos feitos de células, e precisamos resgatar nossa propensão genética à imaginação narrativa. Temos que assumir essa tarefa, que não é apenas dos escritores. A tarefa de reencantar o mundo por via das histórias é algo que compete a todos nós, senão mostraremos aos nossos filhos que o mundo está desertificado, mas não do ponto de vista da biodiversidade, e sim do ponto de vista do encantamento. Podemos morrer de alguém sim, e podemos ainda mais morrer de ninguém. E isso é ainda pior”, concluiu Mia, ovacionado pelo público.