Uma pequena comunidade formada às margens da lagoa de Jacarepaguá é, hoje, símbolo da luta por uma concepção de cidade que priorize a vida em vez do dinheiro. Vila Autódromo recebeu esse nome por causa da proximidade com o autódromo de Jacarepaguá, mas é o barulho dos tratores que, há décadas, ameaça seus habitantes. Na semana em que a prefeitura intensificou o assédio à vila, derrubando a associação de moradores e aumentando a presença policial, os habitantes da comunidade se preparam para, mais uma vez, exibir sua principal arma de resistência: um plano de desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural elaborado de forma colaborativa, contando com a participação da população e apoio técnico de duas grandes universidades do Rio de Janeiro. O documento, que será lançado neste sábado, dia 27, não é novidade para as autoridades municipais, mas sua maior façanha, a de demonstrar a possibilidade de convívio entre as construções olímpicas e as casas da vila, tem sido ignorada por aqueles que preferem reafirmar velhos clichês, que os anos tem tratado de demolir.
Existe uma regra clássica do jornalismo investigativo que diz que, para se chegar a um furo que derrube a república, é preciso seguir o rastro do dinheiro. Pode não ter o mesmo efeito devastador a curto prazo, mas perseguir a trilha de uma palavra também ajuda a revelar alicerces apodrecidos. Entre os discursos oficiais dos que advogam pelos grandes eventos esportivos, há muitos anos, uma palavra vem se destacando: legado. Foi a partir dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007, que ela se instalou definitivamente nas redações da grande imprensa. Vinda dos releases oficiais, das entrevistas de cartolas, políticos e empresários do esporte, com muita facilidade repórteres, editores e colunistas passaram a adotar a palavra, a um ponto em que, hoje, é possível ouvi-la até mesmo na boca do povo. Na época, houve quem reclamasse. Editores mais experientes e comprometidos com a ideia de um jornalismo que busca a comunicação efetiva com a população rejeitavam o legado. Já tínhamos termos correlatos, de uso mais corriqueiro, como herança. Mas não teve jeito. Passou-se a falar em legado do Pan, como quem diz bom dia.
Mas entre a retórica e a vida há desvãos. Se a palavra legado parecia muito bonita, o mesmo não se pode dizer da Vila Olímpica com problemas graves de saneamento, da piscina “de-primeiro-mundo” que rachou, ou do estádio que custou mais do que seis vezes o orçado e que, por risco de desmoronar, foi interditado. Passado o Pan do Rio, começaram a aparecer, para os mais atentos, sinais de que era melhor uma herança na mão do que um legado desmoronando. Só que da mesma forma que para Washington Luís governar era abrir estradas, para os dirigentes políticos atuais, legar, legar e legar parece ser o norte, ainda que para tanto seja necessário esbarrar na ilegalidade. As remoções são a face mais cruel dessa saga em busca de um legado e um futuro que não chegam nunca para os que estão nas camadas sociais mais pobres. É a esse discurso que Vila Autódromo resiste. O que relatam as lideranças comunitárias sobre as famílias que já deixaram suas casas é uma situação já conhecida por quem estuda esse tipo de política habitacional autoritária: moradores com problemas psicológicos, por conta da perda da identidade comunitária e outras dificuldades de adaptação a suas novas casas.
A comunidade que ficou, hoje formada por não mais que 30 famílias, é um foco de resistência contra os avanços da especulação imobiliária, que pega carona nos grandes eventos. Desde a construção do Riocentro, nos anos de 1970, os moradores daquele lugar – a maioria vinda de outros despejos – são assediados pelas grandes empreiteiras, que usam o poder público como seu braço armado. A luta de seus moradores parece fora de propósito para grande parte dos que habitam a cidade que o próprio prefeito diz ser uma empresa. Diferentemente do que acontece no mundo corporativo, na Vila Autódromo, há lugares e pessoas que não têm preço, talvez por se saberem credores de uma herança inestimável: a luta de seus antepassados pela vida. Essa herança, diferentemente das falsas promessas de legado, existe. Pode ser sentida, ouvida e sorvida nas águas, nas matas e na terra que resistem ao concreto e ao bezerro de ouro do progresso.
* Leia também, neste link, entrevista com Maraci Soares, liderança comunitária do Quilombo do Camorim e integrante do Conselho Popular de Moradia do Estado do Rio de Janeiro.