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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Fosfoetanolamina: a pílula controversa que ultrapassou a competência da ciência

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reiterou profunda preocupação em relação à Lei n. 13.269, que libera a produção e comercialização da fosfoetanolamina mesmo sem a realização de estudos clínicos capazes de atestar sua eficácia e segurança, além da ausência de registro na agência, de acordo com o estabelecido para todo e qualquer medicamento utilizado no país. O alerta, emitido no mesmo dia da sanção da lei que autorizou o uso da substância sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, expressa a preocupação da comunidade científica diante do tema. Pesquisadores, gestores, cientistas e médicos apontam “equívocos” na validação oficial do uso da fosfoetanolamina, uma vez que pode iludir pacientes, despender recursos já escassos no financiamento de pesquisas científicas e esvaziar o próprio papel da agência reguladora. 
 
Conforme revela um dos críticos à aprovação da lei, Francisco Paumgartten, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e membro da Câmara Técnica de Medicamentos da Anvisa, as evidências científicas utilizadas para respaldar o uso estão longe de indicar utilidade no tratamento de algum tipo específico de câncer, e menos ainda de neoplasias em geral.
 
“As evidências pré-clínicas de que a fosfoetanolamina tenha atividade antineoplásica são incipientes, e não há qualquer estudo clínico controlado e randomizado, ou mesmo casos clínicos documentados de pacientes que tenham, de fato, se beneficiado dessa substância. O que há é a exploração de pacientes em estado emocional de grande vulnerabilidade e seus familiares pelos ‘inventores’ do suposto medicamento. A decisão do Legislativo, respaldada sem vetos pelo Executivo, à revelia da comunidade científica é deplorável e expõe o país ao ridículo no cenário internacional. Em busca de apoio popular, pularam etapas na aprovação dessa substância. É como se houvesse trilhado um atalho para liberar seu uso em pacientes sem passar pelos testes. Nos países desenvolvidos, substâncias químicas se tornam medicamentos após percorrer longo caminho (6 a 10 anos) e serem submetidas a testes farmacológicos e toxicológicos em animais (fase pré-clínica), além de avaliações de eficácia e segurança em três fases sequenciais de estudos clínicos”, justificou o pesquisador. 
 
Autor de artigo sobre o tema no Boletim do Cecovisa/ENSP, Paumgartten também enxerga incoerência no papel desempenhado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que expendeu R$ 10 milhões em pesquisas para avaliar a segurança e eficácia da molécula no tratamento do câncer.
 
“Trata-se de investimento público, num momento de escassez de recursos para pesquisa, em molécula que, previamente, não passou por triagem completa de atividade antitumoral. Além disso, toda fase pré-clínica de testes foi contratada de instituições “parceiras do MCTI” sem que tivesse ocorrido competição e seleção de propostas com base em análise por pares, como deveria ser a norma do Ministério. Não estamos colocando em dúvida o trabalho desses grupos, mas reiterando que os investimentos só poderiam ser feitos após evidências iniciais consistentes de que a fosfoetanolamina tem algum potencial terapêutico no tratamento do câncer. Essas evidências não existem.”, comentou o chefe do Laboratório de Toxicologia da ENSP, que completou: “A triagem de atividade antineoplásica preconizada pelo Instituto Nacional do Câncer (NCI) dos Estados Unidos, por exemplo, é uma sequência hierarquizada de ensaios de laboratório. A substância passa de uma etapa para a subsequente dependendo do resultado obtido na etapa anterior. A fosfoetanolamina, pelos dados já obtidos, não passaria da primeira etapa.”

O papel da Anvisa
 
Na opinião da pesquisadora da ENSP Vera Pepe, cuja experiência na área de vigilância sanitária e acesso a medicamentos pela via judicial é considerada vasta, a reiterada contraposição do Congresso Nacional, às questões de competência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, órgão responsável pela tomada de decisão sobre a regulação sanitária, incluindo a avaliação quanto à realização de ensaios clínicos e registro de medicamentos, atualmente comum e preocupante. 
 
“Observamos com frequência a atuação contrária do Congresso nas decisões competentes à Anvisa. Além da interferência nos critérios técnicos, falamos de ações que envolvem uma série de conhecimentos específicos, de atuação de um órgão regulador no país. A pressão, via Congresso, ocorreu recentemente também em relação aos inibidores de apetite, aos transgênicos e à restrição da propaganda de alimentação infantil. Essa situação dificulta realizar medidas de proteção da saúde e de regulação a contento”, assegurou a pesquisadora do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária da ENSP.
 
O próprio diretor da Anvisa, Jarbas Barbosa, em entrevista à Folha de S. Paulo, comentou a interferência. “Sempre que há interferência do Legislativo e do Judiciário, a imagem do país fica abalada. Torna possível a outros países pensar que, além do filtro técnico da Anvisa, medicamentos e produtos podem ser oferecidos à sociedade de outras formas”, disse. Sobre a fiscalização, completou: “No caso da  fosfoetanolamina, como será feito se não há registro nem lote? Fiscalizar vai ser difícil, porque não haverá obrigação de informar data de fabricação e lote”, declarou em reportagem publicada dia 1º de maio. 
 
Vera Pepe, da ENSP, também comentou os riscos proporcionados pela ausência de fiscalização. “Não há responsabilização indicada. Quem será o responsável no caso de algum problema acontecer por conta dessas decisões que não são tecnicamente embasadas, no sentido da proteção e promoção da saude?”, questionou.
 
Conep: preocupação com o participante da pesquisa
 
Em entrevista ao Informe ENSP, o coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Jorge Venâncio, afirmou ter sido bastante curto, dentro da Conep, o prazo de tramitação do protocolo de análises clínicas da substância química fosfoetanolamina. Conforme revelou, a Comissão estará sempre atenta aos direitos e à segurança dos participantes da pesquisa. Sobre todo o processo, a Conep fez apenas uma recomendação: que não haja limitação de ressarcimento ao participante da pesquisa. 
 
“Colocamos uma pendência no que diz respeito aos direitos do participante, que são praticamente quatro: atender às pessoas que passassem mal durante a pesquisa; garantir o direito à indenização caso haja dano a alguém; garantir o ressarcimento do transporte e alimentação; e o fornecimento gratuito de anticoncepcionais, já que não se conhece os efeitos na gravidez (essa é uma medida de cautela básica). Fomos extremamente rigorosos nessa análise seguindo o cuidado que o assunto requer”, avaliou Venâncio. 
 
Conforme disse o ministro da Saúde, Ricardo Barros, em entrevista à imprensa no dia 13 de maio, “na pior das hipóteses, é efeito (da fosfoetanolamina) placebo. Dentro dessa visão, se ela não tem efetividade, mas as pessoas acreditam que tem, a fé move montanhas", declarou. Mesmo que, após a afirmativa, o ministro tenha destacado o papel da Anvisa na prevenção de riscos à saúde pública, sua interpretação provocou inquietação.
 
“Os políticos e algumas autoridades tem tentado se justificar com o argumento de que se a substância não faz mal, mesmo que não seja comprovadamente eficaz, não haveria problema em liberar o consumo. Trata-se de um equívoco. Em primeiro lugar, não está demonstrado que a ingestão crônica de fosfoetanolamina não cause danos ao paciente. Além disso, o simples fato de não fazer bem, mas o paciente acreditar que a fosfoetanolamina teria, de fato, efeito terapêutico, o desvia de outros tratamentos potencialmente eficazes. Vende-se uma ilusão ao paciente. O câncer é um conjunto de doenças para as quais há hoje tratamentos eficazes. Alguns tipos são curáveis, outros controláveis. Oferecer uma ilusão que acabará sendo desmascarada pela progressão da doença certamente não faz bem ao paciente”, admitiu Francisco Paumgartten.

 
STF acaba de suspender eficácia da lei que autoriza uso da fosfoetanolamina (às 17h50)
 
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, na sessão desta quinta-feira (19), medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501 para suspender a eficácia da Lei Federal 13.269/2016, que autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
 
Ao votar pela concessão da cautelar, o relator do caso, ministro Marco Aurélio, disse entender que a autorização para comercialização da droga sem testes clínicos fere a Constituição Federal. Votaram com o relator os ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux e Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
 
Os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram parcialmente do relator, para permitir o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes terminais.
Na terça-feira, pesquisadores e representantes do Grupo de Trabalho instituído para apoiar o desenvolvimento de pesquisas que comprovem a eficácia e segurança da fosfoetanolamina se reuniram no Instituto Nacional do Câncer para debater os resultados preliminares dos estudos da substância.