"Todo Dia" é o romance de estreia de Terézia Mora, escritora húngara radicada na Alemanha, ganhadora do mais importante prêmio de literatura alemã, o Prêmio Georg Büchner Prize (2018). A autora estará no Rio de Janeiro (12/09) e São Paulo (13/09) para participação em palestras e lançamento do seu livro. Inédita no Brasil, esta é sua primeira obra traduzida e publicada em língua portuguesa.
O livro narra os acontecimentos na vida de Abel Nema, um homem misterioso e fascinante que é um fenômeno lingüístico capaz de falar dez línguas com perfeição, mas que não consegue dar conta dos acontecimentos de sua própria vida. Desde que saiu de sua terra natal nos Balcãs dez anos antes – e os revezes bélico-políticos da região o condenaram ao exílio definitivo como desertor –, Abel Nema tem convivido com estrangeiros mais ou menos adaptados e refugiados ilegais, entre eles um grupo de músicos boêmios, um filantropo desempregado, uma gangue de jovens ciganos, um vizinho pesquisador da teoria do caos e usuário de ervas alucinógenas, as figuras lascivas que ele encontra no inferninho do bairro e uma família acolhedora e simplória a que se vincula através de um casamento fictício para conseguir prolongar sua permissão de residência. Seu extraordinário talento para línguas lhe rende alguns trabalhos como tradutor, mas ele permanece estranhamente vazio e constrangido em sua inabilidade de comunicação e relação com os outros.
Através da sucessão desenfreada de eventos na vida de um indivíduo tão genial quanto perturbado, Todo Dia tematiza questões importantes para o entendimento do mundo contemporâneo e, particularmente, da Europa multicultural atual: guerras, migrações, crises econômicas, exclusões, intolerâncias... No total domínio de uma prosa labiríntica, com intensa troca de perspectivas e rara força poética, Terézia Mora nos atinge em cheio com esta história visceral sobre existências precárias num mundo de transformações vertiginosas. Originalmente publicado na Alemanha em 2004. A tradução da obra contou com o auxílio do Programa de Apoio à Tradução do Goethe-Institut.
SOBRE A AUTORA
Terézia Mora é atualmente uma das mais importantes vozes da literatura de língua alemã. Escritora, roteirista e renomada tradutora do húngaro, nasceu em 1971 em Sopron, Hungria, cresceu e educou-se no ambiente bilíngue da família de minoria alemã. Em 1990, no contexto das transformações políticas que culminaram na queda do Muro, muda-se para Berlim para estudar Hungarologia e Teoria Teatral. Todo Dia é o seu livro de estreia como romancista, publicado originalmente em 2004. Além de romances e contos, Mora também escreveu roteiros, peças e ensaios. Recebeu vários prêmios importantes, incluindo o Prêmio Ingeborg Bachmann (1999), o Prêmio da Feira do Livro de Leipzig (2005) e o Prêmio do Livro Alemão (2013). Em 2018, ganha o mais importante prêmio de literatura alemã, o Prêmio Georg Büchner, pelo conjunto de sua obra.
SERVIÇO
LOCAL: Casa Guilherme de Almeida
ENDEREÇO: R. Cardoso de Almeida, 1943 - Sumaré, São Paulo - SP, 01251-000
DIA E HORÁRIO: 13/09, às 19h, quinta-feira
ENTRADA FRANCA
Trechos de Todo Dia
“Vamos chamar o tempo de agora, vamos chamar o local de aqui. Vamos descrever ambos da seguinte forma. Uma cidade, um bairro situado na parte leste. Ruas de um tom marrom, armazéns vazios ou cheios não se sabe exatamente de quê e casas para desabrigados completamente entupidas, correndo ao longo da linha do trem em zigue-zague, esbarrando num muro de tijolo em repentinos becos sem saída. Uma manhã de sábado, outono há alguns dias. Nenhum parque, apenas um triângulo mínimo e deserto do que se costuma chamar área verde, porque algum pedaço havia sobrado na confluência de duas travessas, sendo assim, um canto vazio. Súbitas rajadas do vento que bate de manhã cedo – isso vem do traçado serrilhado das ruas, uma espécie de prótese social – sacodem um disco de madeira, um velho brinquedo de criança, ou algo parecido, disposto na margem da área verde. Ao lado a alça arredondada de um balde de lixo flutuando livre, o balde mesmo está faltando. Lixo misturado no matagal próximo, que tenta se livrar dele em ataques de calafrios, mas no mais caem apenas folhas estalando sobre concreto, areia, cacos de vidro, verde já repisado. Duas mulheres, e um pouco depois mais uma, a caminho do trabalho, ou vindo do trabalho. Cortam o caminho aqui evitando a esquina, batem com os pés pela trilha, aberta pelos passos e pelo tempo, que divide o verde em dois triângulos. Uma das mulheres, uma corpulenta, ao passar empurra com dois dedos o disco de madeira. A base do disco range alto, como se fosse o canto estridente de um pássaro, ou talvez tenha sido mesmo um pássaro, um entre as centenas que cruzam o céu. Estorninhos. O disco gira cambaleando.”
“O que acontece depois do fim das coisas?
Um novo começo! Agora! Colegas! A vida real!
Uma festa de formatura, ou melhor, uma orgia, todos berrando feito... (o mais alto possível) entre as espessas paredes de pedra do calabouço, atualmente a abóbada de um bar de subsolo, debaixo da praça central, pessoas jovens em trajes preto e branco, em meio à fumaça estacionada, por todos os lados, no solo salpicado de cal, as ruínas de tempos antigos: cabeças, torsos, pés de pedra. Este é então o ritual solene do fim de nossa... juventude (dourada): um tédio, ficar sentado ali à toa em roupas bem-comportadas, em volta de mesas de madeira pesadas e disformes. Não há muito o que dizer um ao outro, dizer também o quê? e para quem? A melhor coisa a fazer é encher a cara, se possível sem perder muito tempo, se necessário até tampando o nariz inchado, de um jeito ou de outro se consegue engolir o troço: amarelo, vermelho, espumante, mas o melhor de todos é a substância transparente. Chega um momento em que alguém ganha coragem e vê que é hora de subir em cima da mesa e, com espírito vibrante, gritar um discurso sobre a vida!”