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sexta-feira, 22 de setembro de 2017

'Comunicação de riscos em saúde ocupa um lugar biopolítico de reforço da culpabilização dos indivíduos', apontam pesquisadores

Em ensaio publicado no Cadernos de Saúde Pública, os pesquisadores Luis David Castiel e Paulo Roberto Vasconcellos-Silva, da ENSP; e Danielle Ribeiro de Moraes, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, problematizam a abordagem dominante da comunicação dos riscos em saúde. O estudo acessa e toma para análise conteúdos provenientes tanto de autores que se apresentam como especialistas na área de comunicação de riscos, quanto de sequências de mídia audiovisual de amplo acesso. "Enquanto parece se configurar uma área de mediação entre expertos e leigos, potencial geradora de inovação tecnológica e de mercadorias passíveis de serem consumidas, a comunicação de riscos em saúde ocupa um lugar biopolítico de reforço da culpabilização dos indivíduos e de propostas individualizantes de evitação dos riscos", dizem. Segundo os autores, o apagamento dos contextos em que ocorrem as exposições ao risco alimenta e é alimentado pela conjuntura neoliberal em que vivemos. "Além das tentativas de mediação que são muitas vezes problemáticas, a perspectiva de gestão racional e individual dos riscos, por mais aparelhada por tecnologias inovadoras, não minimiza a precariedade contextual em que ocorre a produção dos riscos sanitários." Paradoxalmente, acrescentam, a crença na gestão dos riscos, presente na abordagem dominante da comunicação dos riscos em saúde, acaba por produzir moralização, ansiedade e mal-estar.
 
O estudo mostra que, atualmente, percebe-se, sobretudo por intermédio do uso de buscadores na Internet, como é prolífica a produção sobre a comunicação do risco na prevenção em saúde. Há muitas definições disponíveis que, grosso modo, não parecem variar de forma importante, até porque há uma matriz instrumental vigorosa hegemônica neste setor. “Em geral, são frequentes as ilustrações que mostram diagramas em que há diferentes intersecções de três elementos: avaliação de riscos, gestão de riscos e comunicação de riscos.”
 
Em relação à comunicação de riscos em Saúde Pública, os autores dizem haver um progressivo afastamento da valorização das percepções consideradas erradas, devido à suposta ignorância ou desleixo das pessoas, para uma perspectiva na qual se encara a comunicação de riscos como um processo de interação recíproca entre aqueles que são considerados leigos e os especialistas. “Deve-se considerar o contexto no qual se dá essas relações, inclusive colocando-se em discussão a natureza da evidência científica em si como fonte insofismável da verdade.”
 
O estudo lembra que, no Brasil, a comunicação como âmbito de emissão de informações e práticas sociais tem uma história de interações com a esfera da saúde desde o começo do século XX. Isso aconteceu de forma vinculada às políticas de saúde e às regulações de controle sanitário, nas circunstâncias das relações recíprocas de implantação do modelo sanitarista de assistência à saúde. A comunicação do risco foi instituída no Brasil pretendendo aquilatar e gerir riscos ligados aos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, sobretudo aqueles referentes a sistemas industriais complexos, como os de química fina e de energia atômica.
 
Para os autores, nos anos 1980, a análise de riscos também se tornava uma forma de lidar predominantemente com as articulações políticas com vistas, primordialmente, à produção de consensos nas esferas de decisão. As resoluções de cunho técnico que deveriam atender necessidades coletivas se reduziam a argumentos retóricos para camuflar a despolitização das discussões quanto à aceitabilidade dos riscos, ao justificar decisões políticas e econômicas em termos de ações estrita e supostamente técnicas.”
 
Outra questão importante são as formas como a mídia concebe e elabora retoricamente as notícias que envolvem contingências de risco, eventualmente incidindo em exageros inconvenientes capazes de gerar alarmes desnecessários, também, sustentando a supremacia descontextualizadora de uma perspectiva empírico/lógica de ciência. 
 
O ensaio atenta para a necessidade de se começar a considerar outras formas menos culpabilizantes de tratar muitas das reações defensivas quanto ao risco pelas autoridades governamentais e pelos responsáveis por políticas públicas em prevenção/promoção de saúde. “Decerto, permanecem percepções públicas mal informadas sobre questões de prevenção em saúde: as pessoas podem ter medo dos perigos errados e não tomar cuidados (caso estejam a seus alcances) diante de exposições a riscos indiscutíveis.” Mas, ressalta o texto, importa criar discussões para se obter um ambiente mais favorável para debates sobre riscos para além de recomendações autoritárias que somente apelem para mandatos moralistas de autodisciplina/autocontrole.
 
Ainda assim, os pesquisadores acreditam que os processos de comunicação do risco supostamente mais efetivos podem não resolver, talvez, nem mesmo amenizar dilemas e paradoxos relativos a situações de perigos e incertezas, nem trazer maior compreensão ou fazer com que as pessoas obrigatoriamente adotem comportamentos seguindo ideários da vida saudável. “Achados de pesquisas empiricistas no contexto das democracias liberais, entre outros aspectos, consideram que riscos e valores das pessoas são diferentes, probabilidades podem ser difíceis de interpretar e debates sobre risco são condicionados por seu contexto social/político.”
 
De acordo com o estudo, os autores do tema expõem que os riscos são geralmente mais preocupantes (e menos aceitáveis) se percebidos: (a) como sendo involuntários (ex.: exposição à poluição) mais do que voluntários (esportes radicais); (b) quando desigualmente distribuídos (alguns se beneficiam e outros sofrem as consequências); (c) quando inescapáveis, mesmo tomando precauções pessoais; (d) surgindo de fonte nova, não conhecida; e) resultando de fontes feitas pelo homem, mais do que de fontes naturais; (f) causando danos latentes ou irreversíveis (ex.: o surgimento de doença muitos anos após a exposição); (g) colocando algum perigo em particular para crianças pequenas e mulheres grávidas, ou ainda, mais genericamente, para as futuras gerações; (h) trazendo a ameaça sob a forma de morte (ou doença/dano) que provoque terrores/medos particulares; (i) atingindo vítimas identificáveis mais do que anônimas; (j) sendo precariamente entendidos pela ciência; (k) como sujeitos a afirmações contraditórias de fontes responsáveis (ou, pior ainda, da mesma fonte).
 
Leia o ensaio completo intitulado Micromortevida Severina? A comunicação preemptiva dos riscos no Cadernos de Saúde Pública de agosto de 2017.