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terça-feira, 10 de março de 2015

Artigos: A maior dor do mundo


“Ela chega sozinha. Diante de um balcão, uma mulher de uniforme pede que entregue brincos, pulseiras, a bolsa. Já curvada sobre o próprio ventre, é conduzida por um corredor até uma sala isolada onde passa a ser examinada a intervalos regulares por homens e mulheres que entram sem bater na porta, tocam em seu corpo, tiram-lhe a pressão, viram as costas e saem. Dentro de uma hora, é levada para uma sala maior. Passa por uma sequência de camas e consegue ver, no caminho o rosto de mulheres: negras, brancas, muitas jovens e algumas já vividas. Poucas dormem. No final do corredor, entre a cama e a parede, uma cadeira azul. É para ela que apontam as duas mulheres que a conduzem”. A cena, ainda que traga aqui e ali elementos de ficção, não é preâmbulo de um conto policial. Nasceu do testemunho da enfermeira Maria de Fátima Santos durante a mesa Violência Obstétrica e o Nascer no Brasil, no Seminário Diálogos entre a Academia e Movimentos Sociais promovido pelo Grupo Direitos Humanos e Saúde (Dihs/ENSP). Maria de Fátima narrou a chegada de uma mulher em trabalho de parto a uma maternidade pública brasileira. Os elementos de ficção acrescentados para o parágrafo que abre esta reportagem são a bolsa, a pulseira e fila de rostos de mulheres na enfermaria; o resto, é tudo verdade: a cadeira, a violência e a solidão.
 

Maria de Fátima apresentou o trabalho A violação dos direitos das gestantes na perspectiva das leis, protocolos e políticas públicas. A enfermeira, que integra o Movimento pela Humanização do Parto, em Niterói, logo de início, mostrou a conclusão a que chegou: “A violação do direito das gestantes é gritante”. Entre as causas estaria a assimetria do saber dos profissionais de saúde envolvidos no parto, a industrialização do corpo da mulher e a falta de locais preparados para recebê-la. O que se tem como regra é um hospital geral que tem uma maternidade”. A maternidade em que ela trabalha e que foi ponto de partida para sua pesquisa, hoje, segundo a própria enfermeira, apresenta melhores condições de receber mães e bebês. Mas os dados colhidos servem para traçar um panorama sobre a saúde da mulher que dá à luz no Brasil.

Um outro fator alarmante, observado por Maria de Fátima, diz respeito ao pré-natal. “Geralmente o pré-natal é muito ruim. Em casos extremos, você tem uma mulher que descobre, numa sexta-feira, que está grávida. No sábado, ela apresenta um sangramento. Dá entrada no hospital na segunda e acaba abortando”.

A situação das mães que saem da maternidade com seus filhos no colo também merece nota. “O ritual de passagem, quando tem internação, sempre digo que é um ritual carcerário. Ela entrega os pertences, vai para um pré-parto isolado. Você encontra a mulher na quinta, a paciente está lá desde segunda. A família sem acesso a ela. Privacidade, nenhuma. Respeito ao outro, nenhum”. Enquanto Maria de Fátima fala, com um controle remoto passa as telas do powerpoint. A imagem de uma cadeira azul é projetada. No chão abaixo dela, uma mancha de sangue. “Essa pra mim é a imagem símbolo disso tudo que estou falando. Muitas vezes, é nessa cadeira que a mulher fica sentada, até parir”. Ao concluir sua fala, a enfermeira lembrou das leis que regulamentam o parto e tentam humanizá-lo. “Elas existem, mas não são cumpridas. É como um guia da Unicef, sobre o mesmo tema, que é lindo mas não sai da gaveta”.

Retirar um projeto da gaveta, ainda que não soubesse exatamente por onde caminhar, foi o que fez a segunda palestrante da mesa. A fala de Lilian, tal qual a de Maria de Fátima, também se assemelhou a um testemunho. Ela nos contou como se descobriu doula. A palavra, nova para muitos, nomeia a mulher escolhida pela mãe que vai ter um filho para acompanhá-la no parto. A função tem sido exercita por profissionais de saúde, como enfermeiras, mas também por mulheres que fazem uma especialização. Foi exatamente esse o caso de Lílian, que é pedagoga. Mas essa é uma descrição do que é uma doula do ponto de vista externo. Lílian prefere definir de outra forma seu trabalho: “A doula é uma figura não muito grata, porque atrapalha o que está acontecendo na maternidade. Uma cesárea, por exemplo. Às vezes, a pessoa acha que tinha feito a melhor opção e a doula mostra que não. Isso atrapalha as rotinas médicas. Depois, até, foi ocorrendo uma mudança porque o médico começou a perceber que a paciente ficava mais tranquila com a gente”.

Ao falar sobre o trabalho da doula, Heloisa Lessa, enfermeira obstetra que tem se destacado nas discussões sobre a humanização no parto no Brasil, buscou uma perspectiva histórica: “A doula surgiu na Colômbia. A ideia era que mulheres da comunidade, com experiência de parto, passassem a auxiliar a mulher que ia parir. Entre todas as funções que ela desempenha, a mais importante é segurar a mão da mulher que está parindo”.

Heloisa fechou o seminário do DIHS. Ainda que repleta de informações históricas e de fisiologia, enumeradas em velocidade, sua fala, talvez nem fosse necessário mais dizer, também assumiu a forma de um testemunho, dado do ponto de vista de quem já fez mais de 700 partos em casa. “Tem trinta anos, mais ou menos, que entendemos que o processo é hormonal. Quem comanda é o bebê. Como se sabe, o cérebro humano tem duas partes que não falam ao mesmo tempo. Um seria responsável pelas emoções e o outro pelo pensamento. O cérebro responsável pelo pensamento é o que geralmente atrapalha, trava a produção de ocitocina.  Tem 20 anos que a gente entendeu esse hormônio. É ele também que entra em ação no ato sexual, por exemplo. Do ponto de vista hormonal, portanto, ser penetrada por um pênis ou deixar uma cabeça sair é a mesma coisa. Então, se acendem a luz, a mulher não pari”.

Como quem sabe aproveitar cada um dos minutos a que cada palestrante teve direito no seminário, Heloisa seguiu criando pontes entre os aspectos fisiológicos do parto e suas causas e consequências na sociedade. Ainda sobre a ocitocina, questionou: “O que é de uma civilização sem o hormônio que produz o afeto entre mãe e filho? É por isso que a gente está na lama que está”.

A quantidade de cesárias desnecessárias estaria entre as causas desse déficit hormonal que gera consequências sociais. Para se ter uma ideia da mudança de mentalidade que é necessária para reverter esse quadro, a maioria das mulheres que chegam para parir num hospital público se sentem diminuídas por não terem plano de saúde e portanto condições de fazer uma cesárea. Heloisa Lessa, entretanto, vê muitos progressos nesse campo.  Ela lembrou que no caso específico do Rio de Janeiro, em muitos casos, o serviço prestado pelo SUS em maternidades tem sido uma boa opção para quem quer ter um parto bem assistido. A enfermeira evita, entretanto, falar em modelos e não faz uma condenação cabal da cesárea “O importante é entrar em trabalho de parto. Entrar em contato com a ocitocina. Por ser, como eu falei, um elemento fisiológico, a função da equipe médica é dar condição do parto acontecer. Parto não se ensina, parto não se prepara. Parto se vive. É dar condições pra que a mulher entre em contato com os hormônios. É um processo absolutamente instintivo. Já vi umas cinco vezes a mãe lamber o filho assim que nasceu e foi lindo. Só que ligou a câmera do GNT, não vai rolar.”

Assediadas por câmeras ou abandonadas à calmaria de uma maternidade numa zona rural; em casa, tranquilas; num hospital público ou particular; de mãos dadas com uma doula, sozinha ou acompanhada da própria mãe: são essas as vozes que falaram pelo testemunho de Heloisa, Lilian e Maria de Fátima. De diversas formas, todas pareciam pedir a mesma coisa: o direito de serem ouvidas, afinal, como sentenciou Heloisa Lessa, de forma irretocável: “A dor do desrespeito é maior do que a dor do parto”.