As mentiras que minha mãe contava
Eu sou um escritor, sou um mentiroso e me é mais fácil afirmar que sou
um mentiroso que um escritor. O advogado também é um mentiroso e nem por isso é
um escritor. A afirmação de que sou escritor também pode ser mais uma mentira,
mas tanto na literatura quanto nos julgamentos a diferença entre verdade e
mentira é muito tênue. Minha mãe ensinou-me a mentir sem sentir saber que
estava mentindo ou que a mentira às vezes é uma forma de verdade. Quando alguém
com quem minha mãe não queria falar a procurava, ela pedia para dizer que não
estava. Depois falava que estava cansada, que ela sabia o que a pessoa queria e
mais tarde iria ao seu encontro. Suas mentiras, que também eram minhas, me
pareciam tão necessárias que eu dizia que ela não estava sem que ela houvesse
me incumbido disso. Se seu olhar estivesse distante ou se descansasse, eu
falava que ela não estava e tinha para mim que não estava mentindo, afinal ela
estava em qualquer lugar que não fosse nossa casa.
Através dos seus relacionamentos percebia que quando algo não ia bem, ou
quando eles terminavam, por incompatibilidade devido ao acúmulo de erros,
sempre superior aos acertos, não era permitido violar o silêncio de suas
sentenças absolutas que diziam muito mais do que se não fossem castradas.
Utilizar a saúde e a condição financeira, como meio para se aproximar
ou afastar através de estórias era quase um padrão, que se sustentará
provavelmente até a mente não for mais funcional.
A mentira na minha casa sempre foi uma metáfora da verdade. Nunca
acusávamos uns aos outros de mentirosos e nem nos orgulhamos de ser
verdadeiros, sabíamos sermos verdadeiros com nossas mentiras metafóricas. Meu
avô não mentia, omitia, calado e introspectivo. Também nunca se valeu da
verdade como um bem. Toda vez que a verdade se fez necessária na minha casa,
junto dela vieram outros sentimentos menos nobres que a veracidade dos
acontecidos; tais revelações foram indispensáveis nos devidos momentos,
conquanto o embuste já estivesse sido usado e causado o mesmo efeito.
Aprendemos a usar inverdades ou verdade e assumir as conseqüências, e o
que definia o resultado da ação, como boa ou ruim, não era a autenticidade do
discurso, mas sua legitimidade. As palavras da minha mãe eram certas porque
além de ser mãe ela não deixava espaço para a dúvida. A firmeza na voz, a
convicção, a autoridade, eram convincentes.
O problema da mentira é a conotação pejorativa que lhe dão e para isso
temos alternativas. O escritor não mente, ele cria um universo ficcional e tudo
o que escreve é real naquele ambiente. A fábula é um jeitinho especial de
ensinar os valores morais e éticos para nossas crianças, ou seja, uma mentira
para explicar uma grande verdade. A metáfora não é falsa nem verdadeira, mas
serve para distorcer a verdade e contorcer a mentira. Ainda há o ponto de vista
que relativiza aquela que sonha em ser absoluta, por exemplo: um sorriso falso
pode ser sarcasmo verdadeiro, e uma briga falsa pode ser um artifício para uma
reconciliação verdadeira.
Pode até parecer uma apologia à mentira, mas ocorre que ela é produto
da verdade e vice-versa, logo também seria uma apologia ao verdadeiro. O falso
é o método para se conhecer ou construir o real e embora minha mãe não seja uma
filósofa, ela me antecipou e mostrou na prática a afirmativa de Nietzsche:
”Quem não sabe mentir não conhece a verdade”.
“Fica decretado que os homens estão
livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça
do silêncio
Nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa com seu olhar
limpo
Porque a verdade passará a ser servida
Antes da sobremesa.”
(artigo V dos “Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello)
Escrito por Jornalista Paulo de Souza
Escrito por Jornalista Paulo de Souza