Simplicidade não é a mesma coisa que simploriedade. Não se trata de simplificar o que quer seja, distorcendo os fatos, a realidade. Não se trata de adotar uma visão tosca, pouco refletida ou crítica. Diz respeito a conseguir compreender, e bem, sem se perder em nossas próprias firulas cognitivas, narcisistas ou obscuras.
Comte-Sponville, em seu “Pequeno tratado das grandes virtudes”, elenca 18 virtudes. Umas delas é a simplicidade, pela qual tenho uma predileção especial. Sempre, em minha vida, admirei o simples derrotando o complexo, o complicado, o obscuro e tudo aquilo que é cheio de enredamentos, rodeios e efeitos exagerados, os quais muito geralmente vem acompanhados de uma tentativa desesperada de demonstrar força, poder.
“Tudo é mais simples do que podemos imaginar e, ao mesmo tempo, mais intricado do que poderíamos conceber” (Goethe, 1930, apud Comte-Sponville, 1995, p. 164).
A complexidade existe, mas não façamos dela o mote de um relativismo tolo que pretende abolir toda e qualquer possibilidade de conhecimento válido. Não façamos dela a bandeira de quem pretende igualar todas as formas de conhecimento ou o ardil de quem precisa rebaixar seu interlocutor com invocações de um saber inacessível aos não-iniciados.
Porém, a simplicidade que sempre admirei não diz respeito ao real, às coisas. Admiro pessoas capazes de demonstrá-la, desmontando quem fazia malabarismos para subjugar quem mora na credulidade. O que me agrada na simplicidade é seu amor pela verdade, sua tranquilidade para desfazer rapidamente o equívoco de quem gosta de complicar para poder dominar. É interessante a sugestão de Nietzsche: há quem turve as águas para fazê-las parecer profundas. Enfim, é um joguinho raso e sujo, e recheado de aparências enganadoras.
A tradição Zen também detecta rapidamente esses tipinhos e os bota logo pra correr. Se começar a complicar, a embromar, vem logo uma varada nas costas ou uma bofetada. Para o analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo, é o joelhaço. Se o sujeito começa a se perder em abstrações sem rumo, em inutilidades espirituais camufladas de ridícula seriedade, o analista de Bagé lhe mete um joelhaço na boca do estômago e o bichinho volta correndo, tinindo, para a realidade. São várias as passagens no livro do Veríssimo em que isso ocorre; e são hilárias, sapientes até onde se rói osso da realidade mais crua e despida de frescuras pseudointelectuais.
Uma das grandes virtudes da simplicidade, na minha compreensão, é sua capacidade de resolução e de tradução da beleza da razão em sua pureza: tornar o complexo simples e não o contrário. Não somente desbanca embromadores, como resolve a situação dada. Vai lá e faz. Mata logo a estória, sem enrolação. Sem rococó charlatão. Chega logo na verdade do osso da coisa.
“O simples vive como respira, sem maiores esforços nem glória, sem maiores efeitos nem vergonha. A simplicidade não é uma virtude que se some à existência. É a própria existência, enquanto nada a ela se soma. Por isso é a mais leve das virtudes, a mais transparente e a mais rara. É o contrário da literatura: é a vida sem frases e sem mentiras, sem exagero, sem grandiloquência. É a vida insignificante, a verdadeira vida” (...)
Essa passagem me lembrou de um fato ocorrido com Drummond. Sua poesia, a qual contém os versos “No meio do caminho havia uma pedra/ Havia uma pedra no meio do caminho”, caiu num exame de vestibular, para ser interpretada, para que os candidatos refletissem sobre o que significavam esses versos. Houve até correções pela televisão, com divagações e mais divagações. Quando, por fim, resolveram entrevistar o próprio Drummond e ele respondeu mais ou menos assim: “Não, tinha uma pedra lá no caminho e eu chutei. Foi isso”. Não que fosse somente isso. Mas Drummond não perdeu a piada: como um mestre Zen, deu uma bofetada em todo mundo e saiu rindo. E isso também foi poético, violentamente poético.
Ou mesmo uma estória que contam, sobre a vinda de Albert Einstein ao Brasil. Em companhia dele estava Austregésilo de Athayde. Este tinha um caderno e anotava sem parar. A conversa teria se desenrolado mais ou menos assim: “O que você tanto escreve nesse caderno?”, indagou Einstein. “São minhas ideias. Você não tem também um caderno ou bloco de notas para registrar as suas?”. “Não. Só tive uma”.
“O que há de mais complicado do que uma rosa, para quem a quer compreender? O que há de mais simples, para quem não quer nada? Complexidade do pensamento: simplicidade do olhar. "Tudo é mais simples do que podemos imaginar e, ao mesmo tempo, mais intrincado do que poderíamos conceber", dizia Goethe. Complexidade das causas: simplicidade da presença. Complexidade do real: simplicidade do ser. "O contrário do ser não é o nada", escreve Clément Rosset," mas o duplo ". O contrário do simples não é o complexo, mas o falso”. (...)
“A simplicidade constitui, ao contrário, o "antídoto da reflexividade" e da inteligência, que evita que estas se envaideçam, se percam em si e com isso percam o real, se deem demasiada importância, dissimulem, façam enfim obstáculo àquilo mesmo que pretendem revelar ou desvelar. A simplicidade aprende a se desprender, ou antes, ela é esse desprendimento de tudo e de si mesmo.” (...)
“É a razão, quando ela não se engana a seu próprio respeito: razão lúcida, razão encarnada, razão mínima, se quisermos, mas que é a condição de todas. Entre duas demonstrações, entre duas hipóteses, entre duas teorias, os cientistas costumam privilegiar a mais simples: é apostar na simplicidade do real, mais do que na força de nosso espírito. Essa escolha, que não tem como ser provada, é entretanto de bom senso . Aconteceu-me muitas vezes lamentar que os filósofos, sobretudo os filósofos contemporâneos, façam ordinariamente a escolha inversa, preferindo o mais complicado, o mais obscuro , o mais contorto… Isso os protege contra qualquer refutação e torna suas teorias tão inverossímeis quanto enfadonhas. Complicação não do real , mas do pensamento : má complicação. Mais vale "uma verdade simples e ingênua", como dizia Montaigne, decerto proporcional à complexidade do real, quando necessário, mas sem lhe acrescentar os enredamentos de nosso espírito nem confundi-la com estas. A inteligência é a arte de reduzir o mais complexo ao mais simples, não o inverso.” (...)
“Toda geração tem seus sofistas, seus intrujões, seus preciosos ridículos, seus pretensiosos. Descartes, contra os de seu tempo, soube dizer o essencial, que também vale contra os do nosso: " Sua maneira de filosofar é muito cômoda, para aqueles que só têm espíritos muito medíocres; pois a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem permite-lhes que falem de todas as coisas tão ousadamente como se delas soubessem e que sustentem tudo o que dizem contra os mais sutis e mais hábeis, sem que se tenha meios de convencê-los." A obscuridade protege. A complexidade protege. A isso Descartes opõe os princípios " muito simples e muito evidentes " que utiliza, os quais tornam sua filosofia compreensível para todos e discutível por todos . Não pensamos para nos proteger . A simplicidade também é uma virtude intelectual.” (...)
"Querendo ser simples", escreve Fénelon, "nos afastaríamos da simplicidade ." Trata-se de não afetar nada, nem mesmo simplicidade. Mais vale ser simplesmente egoísta do que afetar generosidade. Mais vale ser simplesmente volúvel do que afetar fidelidade. Não, mais uma vez, que a simplicidade se reduza à sinceridade, à ausência de hipocrisia ou de mentira. Ela é antes a ausência de cálculo, de artifícios, de composição. Mais vale uma simples mentira do que uma sinceridade calculada. "Essas pessoas são sinceras", prossegue Fénelon, "mas não são simples; não se sentem à vontade com os outros, e os outros não se sentem à vontade com elas; não encontramos nelas nada de desembaraçado, nada de livre, nada de ingênuo, nada de natural; preferiríamos pessoas menos regulares e mais imperfeitas, que fossem menos compostas. Eis o gosto dos homens, e o de Deus é o mesmo: ele quer almas que não se ocupem de si mesmas, como que sempre ao espelho para se comporem." A simplicidade é espontaneidade, coincidência imediata consigo mesmo (inclusive naquilo em nós que ignoramos), improvisação alegre, desinteresse, desprendimento, desprezo de provar, de prevalecer, de parecer…” (...)
“O mundo é simples porque é a única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa ou o silêncio." (...)
“Sabedoria de poeta : "Vamos aqui e ali, à procura de uma alegria por toda a parte em migalhas, e o saltitar do pardal é nossa única possibilidade de saborear Deus espalhado no chão." Tudo é simples para Deus; tudo é divino para os simples.” (...)
“Nada tem a provar , pois não quer parecer nada. Nada tem a buscar, pois tudo está ali . Há coisa mais simples que a simplicidade ? Há coisa mais leve? É a virtude dos sábios, e a sabedoria dos santos.”