A mudança para o modo de produção industrial (capitalista) e na própria concepção de trabalho trouxe alterações em relação ao espaço público e privado e em relação à organização familiar.
Na virada do séc. XIX para o séc. XX a rua passa a ser vista como espaço público, de trabalho e da indústria; local onde se realizavam negócios e onde se transitava com objetivos comerciais. A casa que antes abrigava o trabalho dos que nela moravam, agora transforma-se em local de convivência privada; um refúgio para a família nuclear frente às mudanças sociais, políticas e econômicas que estavam acontecendo, como, por exemplo, a diminuição das distâncias hierárquicas, já que a ascensão dava-se não mais através de heranças, mas cada vez mais através de conquistas e o espaço da rua cada vez mais pertencente ao Estado e ao trabalho, o que fez com que a família se voltasse mais e mais para si, se fechando.A família que antes se unia com objetivos políticos passa então a basear seus laços e alianças em sentimentos como amor, paixão e desejo. Há ainda uma grande transformação no valor atribuído às suas crianças, antes vista como pequenos adultos sem grande valor por conta das altas taxas de natalidade e mortalidade. Com o desenvolvimento de uma concepção de infância agora tornam-se o centro da família, que passa a ter como características a troca afetiva entre os parceiros e o amor entre pais e filhos. Nesse sentido, como diria Mizhari “... o cuidado infantil torna-se um dos organizadores do sentimento moderno de família.”(Mizhari, 2004, p.30).
A crise na família começa a ocorrer quando esta se vê sobrecarregada e temerosa de sua capacidade para suprir todas as demandas impostas, pois cabia à família acolher, amar, tranqüilizar, mas também preparar para o trabalho e para a vida e manter a harmonia nuclear, ou seja, cabia à família tarefas muito difíceis de serem desempenhadas. Essa crise passou por diversos estágios, mais em nenhum momento a família deixou de ser importante para a socialização do sujeito e para o seu desenvolvimento. Ainda hoje quando a família atribui a outros – os especialistas, a função de educação e mesmo socialização primária de seus filhos, é vista na maioria de seus arranjos, como determinante, pois mesmo quando essa socialização é dada por um outro, este foi escolhido – e não um outro possível – pela família.Continuamos em nosso percurso histórico citando Lasch; este autor chama atenção para o fato de que nas sociedades americanas existia (ou ainda existe?) uma divisão, uma cisão entre afeto e autoridade, na medida em que os pais querem ser responsáveis apenas pelos bons momentos dos filhos. Corrigir, chamar atenção, ensinar, pôr de castigo, tudo isso ficaria sob responsabilidade das instituições educacionais e do social de uma maneira geral. Ou seja, os pais não querem ter que suportar o fato de ás vezes serem vistos como autoritários, repressores, caretas ou coisas do tipo, o que também faz parte de um desenvolvimento saudável. É sabido por nós que as crianças precisam não apenas de amor e atenção, mas também de limites e esse limite que se estende para a fase da puberdade não é nada mais do que a reafirmação do amor dos pais. Essa relação sem conflitos, sem limites ou regras severas, traz uma sensação de perfeição, de harmonia que em nada corresponde à verdade dos fatos.
Mizhari aponta ainda para vários caminhos interessantes que podemos considerar neste artigo, como por exemplo:
* O tempo do trabalho ser mais valorizado do que o tempo da família.
* A liberdade ser pensada como algo individual e não político – reivindicação feminina por igualdade.
Quanto mais os pais estão ausentes, mais as crianças ficam entregues à TV. Muitas vezes são formadas e educadas pela mídia. Dessa forma, o seu desenvolvimento não é pautado em valores familiares e/ou fraternos, não se aponta com isso para uma ausência de valores e sim para uma formação pautada em valores de mercado, a formação de pequenos consumidores.Os pais carregam dentro de si uma enorme culpa por estarem ausentes de casa desde muito cedo (idade dos filhos) e durante tanto tempo num dia.
A mídia, sobretudo a televisiva que é a de maior entrada entre as crianças e jovens, sabe disso e lucra jogando com a culpa e o medo de milhares de pais em seus comerciais, vendendo produtos e programas infantis.Lasch fala ainda da reivindicação feminina por igualdade e liberdade, porém é preciso ter cuidado para não se considerar que as resoluções para esses impasses estariam no plano individual, como bem lembra a autora: “(...) Sem transformar o trabalho, o consumo e a busca imediata por satisfação, geramos simplesmente uma indiferença frente à necessidade de jovens e crianças, passando eles a serem vistos como um simples peso à liberdade de mulher".(Mizhari, 2004, p.32 ).
Uma organização do trabalho que não considera as diferenças de necessidades entre homens e mulheres, que não respeite o seu período de gestação, amamentação e primeiros meses de vida do bebê, onde este precisa necessariamente de cuidados especiais e de carinho e atenção da mãe, é uma organização desumana, que tem acima do homem e da mulher e das suas necessidades de afeto e relações interpessoais, o lucro imediato. Diferente do que se pensa ou se propaga, não é a família que sobrecarrega a mulher e a faz escolher entre o desejo de ser mãe e ser bem-sucedida profissionalmente. Uma situação não interfere ou anula a outra. O que faz com que as mulheres tenham que escolher entre ter filhos jovens, construir uma família ou serem independentes são as exigências do mercado de trabalho, que não acompanham as mudanças familiares que ocorrem na sociedade.
É o trabalho, e não a família que faz com que a mulher faça sacrifícios, renúncias, dedique-se dia e noite e sofra por se sentir ausente e culpada por sua ausência.
Essa questões podem ser ampliadas para a paternidade, ou seja, quando será possível uma paternidade mais participante, mais ativa, com divisão de tarefas e de responsabilidades sem que com isso ponha-se em risco a estabilidade no trabalho como por vezes acontece com as mulheres?Lasch aponta para a cisão entre vida pública e privada ao falar da origem da família moderna e o paradoxo instaurado a partir de então. Embora os assuntos “de família” ou domésticos como a educação das crianças da casa sejam apontados como de responsabilidade da vida privada, - portanto dos pais-, esse mesmos pais são atropelados por uma série de regras e normas para essa criação, de acordo com as necessidades do trabalho, ou seja, da esfera pública.Sendo assim, ao pensarmos na construção da família contemporânea a partir da industrialização das cidades podemos ter como pontos fundamentais algumas características dessa última, como por exemplo, a retirada das atividades de produção da casa, ou seja, do espaço doméstico, a apropriação do conhecimento do trabalhador de seu trabalho e de suas ferramentas a partir da gerência e da administração nas fábricas e talvez o mais importante deles, a perda de sentido do trabalho que cada vez menos é feito como algo que diz respeito a uma herança, tradição e socialização da família. Perde-se esse sentido quando o processo de produção passa a ser feito de modo desmembrado, onde cada trabalhador é responsável por uma etapa da fabricação e não domina mais todo o processo.
Mudanças que foram feitas visando agilidade para o aumento de produção e de lucro e que trouxeram conseqüências no núcleo familiar. Bibliografia: MIZRAHI, Beatriz Gang - A relação pais e filhos hoje - a parentalidade e as transformações no mundo do trabalho, RJ, Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
Referências
ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [1973]
LASCH, C. Refúgio num mundo sem coração. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1991 [1977]