Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante”* (Nietzsche). O presente artigo procurará tratar do complexo tema que envolve o que são fantasias em análise ou distorções de material por aquilo que popularmente costuma chamar-se de “mentira”. Pretende uma breve reflexão acerca do uso que o psicanalista poderá fazer das diferentes dinâmicas presentes no setting frente a esses aspectos.
Sabemos da existência de um quadro, onde se perde totalmente a dimensão do que é real, daquilo que é fantasia, naquele que padece dessa dinâmica, ou mais apropriadamente conceituando diríamos dessa economia, conhecida como mitomania, ou seja, uma compulsão a contar pequenas ou complexas “inverdades”. O sujeito que dela padece não tem o menor controle sobre seus impulsos, mente sobre questões, muitas vezes, aparentemente, sem nenhuma importância. Move essa compulsão uma grande necessidade de ser admirado apoiada em grave e intenso sentimento inconsciente de menos-valia, onde traços fortemente narcisistas determinarão o impulso para o ato de mentir. Há também a existência de uma compreensão de que essas supostas “mentiras” guardariam sempre traços associativos acerca de mentiras sexuais a que esse sujeito teria sido submetido em sua infância, de certa maneira apontando para uma dinâmica ligada ao que se conhece em psicanálise como lembrança encobridora( cena primária - ligada à visão da cena sexual de seus pais).
“No entanto, o fato de haver, em algumas fantasias, simulação clara da realidade tanto mostra tentativa de retornar ao mundo objetivo quanto serve aos fins da defesa” (1)
“Nem toda mentira patológica tem, necessariamente, esta estrutura particular. Ela também pode exprimir, de modo menos específico, as lutas que a pessoa empreende para manter a sua auto-estima” (1)
Fato é que em curso de uma análise a questão das fantasias, devaneios, lembranças encobridoras ou mentiras compulsivas, estarão sempre presentes na relação transferencial, e que não há análise sem sua existência em maior ou menor grau, como cadeia associativa, ou ainda, apontando para forte padrão de resistência. Dentro do curso normal de uma análise o psicanalista deverá estar apto a lidar com suas gradações e variações e possibilitar um padrão de associação que possa trazer a tona seus diferentes usos.
É comum o relato de pacientes, movidos por fortes sentimentos de culpa, dentro do manifesto, dirigido ao fato de ter construído para seus analistas pequenos ou grandes relatos que entendem como mentira. Pesquisados em suas cadeias associativas apontarão quase sempre para relatos de material fortemente recalcado que guardam traços por deslocamentos com seu representante que permanecerá inconsciente. A resistência nesse caso se apoiará fortemente em um sentimento superegóico de culpa e vergonha pela “mentira”, assim como a repetição do padrão do medo de ser rejeitado por seu analista, agora na relação transferencial, ocupando o analista, o lugar da mãe abandonadora e não “continente”. Mas, ao alimentar essa evitação, na verdade o analisando alimenta o silêncio da resistência, tão característico, e que serve para ocultar a possível cadeia associativa que poderia ser estabelecida a partir de sua “mentira”. É importante para o psicanalista, em momentos como esse, trabalhar mais do que nunca com sua contra-transferência bem compreendida, evitando a todo custo seus núcleos de acusações superegóicas. Não será desse lugar, que poderá cumprir sua função dentro do enquadre. Toda “mentira” é então resistência e como tal oculta, mas também revela, trazê-la para a associação deverá então ser a meta, bem claramente delimitada e buscada.
Poderemos ainda pensar na característica das “verdades” que um paciente traz para a análise, partindo da suposição que são fantasias ou idéias delirantes, exemplo comum na clínica dessa variação, vem a nós pelos parceiros que desconfiam de seus pares. Como definir o que é delírio de ciúmes, do que está realmente acontecendo e do que se apresenta como algo que é um perigo inconsciente ou ainda uma projeção? Será que cabe ao psicanalista ocupar esse lugar? Como se atua aí com o teste de realidade, fundamental para que se lide com as duplas mensagens envolvidas quase sempre nessas situações? Algumas dessas desconfianças nos chegam com o forte sentimento de que são loucura, o que mais tarde, com um ego mais fortalecido, esse sujeito poderá entender como percepção e entendimento. Isso nos leva a situação inversa que analisávamos antes. Outro exemplo, infelizmente não tão incomum, é o de lidar com sujeitos adotados e que não foram informados sobre isso, que convivem todo tempo com forte sentimento de mentira e engano, tendo na desconfiança seu mote principal que dinamiza seus vínculos. Aí a verdade está oculta até para ele, o discurso manifesto é a mentira que viveu e vive enquanto realidade com grandes conseqüências para sua estrutura de ego.
“A primeira vista, a mentira parece encobrir a verdade, mas Helen Deutsch mostrou que ela revela a verdade; ao que se acrescentou que a maneira por que se faz esta revelação fixa a negação” (1)
Lembrança encobridora – cena originária
“Para além da discussão sobre as partes relativas do real e do fantasmático na cena originária, o que Freud parece ter em vista e querer sustentar, nomeadamente contra Jung, é a idéia de que esta cena pertence ao passado – ontogénico ou filogénico – do indivíduo e constitui um acontecimento que pode ser da ordem do mito, mas que já lá está, antes de qualquer significação introduzida posteriormente.” (2)
Estaria presente a questão da cena primária, entendida como “cena da relação sexual entre os pais, observada ou suposta” (2) e que pertence entre aquilo que Freud nomeou de protofantasias.
De alguma maneira essa suposta cena determina todo um curso da construção psíquica de fantasias, que poderão tomar o curso de uma tendência ao ato compulsivo de mentir. Em quantidade, dentro do que se supõe como normalidade, determinará o livre curso de fantasias que alimentam inclusive a passagem pelo Édipo e sua posterior dissolução.
Essa é sem dúvida, uma concepção teórica que tenta delimitar o campo da mentira e da fantasia em psicanálise, embora quase nunca se possa demonstrar com precisão a diferença de uma para outra, demonstrará de maneira inequívoca, a importância de uma e de outra, igualmente, para o trabalho analítico. Lembrando-nos sempre da relevância que traz, tudo aquilo que tem como meta ocultar, será sempre o melhor indicador do trabalho a seguir, como já pudemos tratar aqui nessa coluna, no texto “Trabalhando com a Resistência”.
Há um caso dos primórdios da psicanálise, relatado por Freud no volume II onde se encontram vários outros por ele tratados, que falará dessas distorções, Katharina, onde no relato que ela faz acerca do tio, Freud pode construir aquilo que chama “conjecturas” que apontavam para uma compreensão dos sintomas desenvolvidos pela jovem.
“Se alguém afirmasse que o presente relato não é tanto um caso analisado de histeria, e sim um caso solucionado por conjeturas, eu nada teria a dizer contra ele. É certo que a paciente concordou que aquilo que introduzi em sua história provavelmente era verdade, mas ela não estava em condições de reconhecê-lo como algo que houvesse experimentado.” (3)
Podemos também pensar na questão da substituição da Teoria da Sedução pelo Complexo de Édipo pela vertente da impossibilidade de se averiguar com precisão até onde se fala em fantasia e até onde está situado no corte do real.
É preciso então se ter em mente que em psicanálise a questão da fantasia, mentira, verdade e realidade é algo que estará sempre em suspeição para que a escuta analítica não se perca. Mesmo quando falarmos das neuroses narcisistas, a psicose, deverá manter a mesma postura de suspensão de valores, muito do que a psicose diz na crueza de seu discurso delirante, aponta para a mais absoluta veracidade dos jogos inconscientes, diretamente projetados no mundo externo. A precisão e profundidade da concretude da fala psicótica apontam para o “não-dito” mais evidente e real no que diz respeito ao vínculo ao qual se refere e que está nele referido. Talvez na psicose e suas distorções quanto ao teste de realidade possamos entender, ainda de maneira mais evidente, a importância do fantasmático para a psicanálise, sem perder a dimensão do quanto à realidade é nela também uma instância. Poderíamos dizer que:
“O significado de uma atitude delirante pode e deve ser compreendido e referido à estrutura da qual emergiu esse delírio. Sem um conhecimento de tal estrutura nosso conhecimento do delírio será parcial, como será parcial a relação de causalidade”. (4)
Poderemos pensar, a título de uma exemplificação de beleza incomparável, na personagem do filme “Dom Juan de Marco”, interpretado pelo charmoso Johnnie Deep e na abordagem feita por seu psiquiatra, Jack Mickller, interpretado pelo impagável Marlon Brando. Ali, naquele filme, a personagem delirante em seu amor, teria que ser resgatado pela medicação e tratamento. Ao final do filme, ficamos em dúvida de quem será que afinal resgatou quem, o quanto o seu terapeuta, implicado no processo de resgate de seu ego, foi modificado pelo padrão de vínculos restitucionais com a realidade, contido no quadro delirante do apaixonante Don Juan de Marco.
O trabalho analítico então, baseia-se na questão da formulação da instância do real em concordância com a cadeia associativa produzida pelo analisando, levando sempre em consideração o fato de que:
“O pensamento lógico pressupõe um ego forte, capaz de adiar, de tolerar tensões, um ego rico em contracatexias e disposto a julgar a realidade conforme a sua experiência” (1)
(...) e que:
“Sempre que a realidade se torna desagradável, procuram-se substitutos mais pictoriais do sonho acordado” (1)
(...) ou ainda:
“Na medida em que ato algum se lhe segue o pensamento é a chamada fantasia. Existem dois tipos de fantasia: a fantasia criativa, a qual prepara algum ato posterior, e o sonho acordado, refúgio para desejos que não se podem satisfazer” (1)
Então já estamos aptos a essa altura a tirar conclusões que apontem para uma atitude de receptividade do analista frente a qualquer uma das manifestações de distorção de material frente à realidade até aqui exemplificadas e descritas, e entendendo sua origem, trabalhar a partir e de dentro dela, não para a dissipar, mas para ressignificá-la. Sempre atuando dentro da relação transferencial, onde cada associação ganhará vida e aspectos de repetição, a partir dela, e assim poderá ser, de alguma maneira, transposta para o ato de viver, que busca em seus vínculos com a saúde, aquele analisando.
Entre o delírio, o devaneio e a fantasia criativa, ou ainda potência criativa, encontraremos abundante material para ser, de alguma maneira trabalhado, e que poderá assumir, ali, entre as quatro paredes do setting analítico, aspectos de releitura dos vínculos estabelecidos por aquele ser que sofre.
“A utilização do mecanismo infantil de defesa que é a negação constitui a primeira mentira” (1)
Há que se pensar também, apenas a título de “devaneio”, que tudo que de melhor produzimos, partirá sempre de uma idéia fantasiosa, sonhadora ou louca mesmo. Será nossa capacidade de transportá-las para uma ação produtiva no mundo exterior que dará o sentido de realidade. Talvez as mentiras compulsivas sirvam, em última instância, a esse fim, uma tentativa de modificação que inverteu a lógica e busca no mundo exterior a mudança e construção de identidade pertencente ao subjetivo e ao mundo interno. Trazê-las para o divã será sempre uma tentativa de recolocar a questão, entendê-la e transformá-la em ação produtiva de realização de um desejo em um ego bem aparelhado.
“O devaneio é então um pouco de matéria noturna esquecida na claridade do dia” **
Bibliografia:
1 – Teoria Psicanalítica das Neuroses - Otto Fenichel
2 - Vocabulário da Psicanálise - J.Laplanche e J.-B. Pontalis
3 - Obras Completas – vol II – Caso Katharina - Sigmund Freud
4 - Teoria do Vínculo - Enrique Pichon-Rivière