Por ocasião do seminário Avenida Paulista: Novos Projetos, Novos Rumos, o Arq.Futuro convidou alguns autores para escreverem sobre as mudanças nos usos dos centros históricos e eixos culturais das cidades brasileiras. Neste artigo, Mauro Calliari trata das transformações nos usos da Avenida Paulista em São Paulo.
A fundação e as metamorfoses da avenida
A fundação da Av. Paulista, em 1891, foi um marco na cidade. Apesar de São Paulo já ter um bulevar – a Avenida Tiradentes – nada se comparava à grandiosidade da nova avenida, construída no alto de um espigão, como coroamento do loteamento capitaneado pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima. A avenida atraiu os paulistanos desde a inauguração para visitarem o magnífico espaço. Era no lugar mais alto da cidade. Tinha belas vistas. O belvedere dava para o vale do Riacho Saracura, com vista para o centro da cidade. Em frente a ele, um pedaço intocado de mata – o atual parque Siqueira Campos, o Trianon. O leito da avenida era dividido em três partes; de um lado, a via destinada aos bondes; no centro, a área para carruagens e do lado direito para cavaleiros. A Paulista era distante do centro, mas teria acesso por bonde elétrico já em 1900.
Mesmo com as pessoas vindo de outras partes da cidade para conhecer a novidade, a Av. Paulista era, em si, uma contradição: para a urbanista Regina Meyer, tratava-se de um espaço moderno com usos “pré-modernos” – as mansões dos novos milionários paulistas. Sem função articuladora, “é o programa e não apenas as suas características físicas que tornavam a Paulista um marco mais comprometido com a opulência e pouco com a modernidade” [1].
De fato, ao pensar no bulevar parisiense, o palco da consciência da modernidade, notamos que a Paulista tinha as calçadas, o simbolismo e as casas, mas talvez não tivesse, nessa época, o brilho da diversidade, a presença da multidão.
Cria-se assim a “rua cenário”, que traz para a cidade um espaço representativo de sua grandeza mas que só viria assumir seu papel na modernidade a partir dos anos 1950, quando os primeiros edifícios comerciais se instalam nos lotes das antigas mansões art-nouveau, postas abaixo sem muita consideração pelo seu valor histórico. É o momento em que surgem os símbolos maiores da avenida: o Conjunto Nacional (1956) e o MASP (1968).
O Conjunto Nacional, que ocupou toda a quadra na intersecção com a Rua Augusta, é um complexo multi-uso incensado por ter uso residencial, escritórios e comércio bem variado no térreo, livrarias, cinemas, lojas e bares, além do restaurante e da confeitaria Fasano (fechada em 1973). Mais importante ainda, ele criou um espaço público invejável no térreo, possibilitando a passagem entre as ruas e sendo pioneiro na “fruição” que hoje faz parte do Plano Diretor da Cidade. Já o MASP tem o mesmo efeito de criação de espaço público sob a grande laje do museu. Interessante é que o vão livre foi uma imposição do loteamento original, que exigira que nenhuma construção tapasse a vista do vale onde se instalaria a 9 de Julho.
A nova vocação da avenida
O movimento da avenida aumentou nas últimas décadas do século XX, atraídas pelas ofertas de trabalho, pela moradia no entorno, pelos vários hospitais e pelas crescentes opções de lazer. Há quem sustente que uma das primeiras grandes manifestações de ocupação do espaço tenha ocorrido durante as comemorações do título paulista do Corinthians, em 1976.
O fato é que a avenida começou a ser cada vez mais o palco de comemorações, protestos, paradas, eventos, desde a Corrida de São Silvestre até o Réveillon oficial da Prefeitura de São Paulo. A qualquer época do ano é fácil encontrar pessoas celebrando alguma coisa.
Em 1991, a instalação da linha verde do metrô dinamiza ainda mais a avenida, facilitando acesso e estimulando uso noturno.
É significativo que os únicos cinemas de rua que sobraram na cidade estejam na região da Paulista: Belas Artes, Reserva Cultural, Espaço Itaú de Cinema, os cinemas do Conjunto Nacional, que mudaram de nome algumas vezes nas últimas décadas, e o Bristol, dentro de um pequeno shopping, mas cuja frente se abre para as performances de artistas de rua, que atraem, por sua vez, pequenas multidões.
Nesse meio de 2017, vemos o lançamento de mais dois novos pólos culturais, o Instituto Moreira Salles e a Japan House, cada um num extremo da avenida. Entre eles, as multidões que tomam conta da avenida, em vários horários na semana, e durante todo o domingo, ocupando até o lugar dos carros.
O laboratório para uma nova cidade
Talvez seja essa mesmo a nova vocação da Paulista, ser o lugar de encontro dos paulistanos. Por isso mesmo, é lá também que aparecem os conflitos entre a vontade de ocupar a cidade e as pré-existências. Moradores, comerciantes, ciclistas, pessoas que querem passear, músicos de rua, skatistas, executivos, camelôs.
A mistura é explosiva, mas necessária e até essencial. É nesse laboratório que vamos poder assistir à experiência de uma cidade que se renova e que obriga os gestores municipais a desenvolverem uma nova e importante habilidade nesses tempos: a negociação de conflitos.
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[1] MEYER, Regina Maria Prosperi. O Papel da Rua na Urbanização Paulistana. Caderno de História de São Paulo: A cidade e a rua. São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo, n.2, p.13-23, janeiro – dezembro 1993.