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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Mostra de Tiradentes homenageia ANDREA TONACCI

ANDREA TONACCI
Quando em janeiro de 2006, durante a 9ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Serras da Desordem, do veterano ítalo-paulistano Andrea Tonacci, foi exibido no Cine Tenda, o cinema brasileiro vivia uma transição, assim como uma (re)descoberta.
transição foi dramática e narrativa, com o surgimento a partir de 2005, principalmente, de filmes mais afetivos no enfoque, com um olhar de solidariedade e de aproximação com os personagens, sem ter na relação com eles um senso qualquer de avaliação e julgamento.
Essa transição talvez só tenha sido percebida, mesmo parcialmente, por alguns olhares críticos mais atentos. Havia um cinema menos contundente no tom e menos violento em suas energias ocupando progressivo espaço na produção do país, depois de uns tantos anos de propostas autorais mais enfezadas na relação com o mundo, a exemplo de Bicho de 7 Cabeças, de Lais Bodansky, e O Invasor, de Beto Brant.
Nos meses anteriores a janeiro de 2006, Cinema, Aspirina e Urubus, estreia no longa-metragem do pernambucano Marcelo Gomes, havia emitido sinais. Nos meses posteriores, outros dois filmes, O Céu de Sueli, segundo longa do cearense Karin Ainouz, e O Cão sem Dono, quinto longa do paulista Beto Brant, salientavam a tendência afetiva, depois transformada em conceito, slogan e semi-movimento (o cinema do afeto)
redescoberta naquele começo de 2006 foi a de Tonacci, que, depois de alguns trabalhos em documentário ao longo de mais de três décadas, endereçados para fora das telas de cinema (festivais e circuitos), retornava em grande estilo, como um meteoro cheio de luz, imediatamente alçado à condição de cânone contemporâneo.
Serras da Desordem foi apresentado pela primeira vez ao público em Tiradentes e, desde então, além de ter recebido amplo reconhecimento da crítica, recolocou Tonacci na linha de frente contemporânea, tanto do pensamento cinematográfico quanto do protagonismo estético, tornando-se uma das maiores referências dos últimos 10 anos. O filme ganhou até um livro com ensaios altamente elogiosos pouco tempo depois.
Serras da Desordem completa 10 anos, justamente, em janeiro de 2016. Será reprisado na sessão de abertura da 19ª Mostra de Tiradentes. Andrea Tonacci será o homenageado da edição. E a própria edição tratará em seus debates e nos catálogos de uma questão cara ao cinema brasileiro, a dos Espaços em Conflito, amalgamando assim homenageado e conceito em um só campo de debate.
A questão dos espaços em conflito é central em Serras da Desordem, uma vez que o protagonista, o índio Carapiru, tem sua aldeia dizimada e, sem terra e família, deslocado e em deslocamento por mais de 1000 km, faz paradas temporárias em diferentes lugares, antes de um retorno amargo e distópico à selva de origem, em grande parte por coincidência.
Se o trauma inicial é fundante do percurso, não se mantém como ferida aberta, mas como cicatrização impotente. O filme condensa na violência contra os índios um processo histórico agressivo na relação com os espaços ocupados, sobretudo nas ocupações pelas forças econômicas armadas.
Serras da Desordem é, apesar dessa dolorida premissa de décadas anteriores do cinema brasileiro, um filme de tom mais recuado, com uma observação atenta sem espaço para o espetáculo fácil de outros filmes sobre os horrores humanos, sociais e políticos, sem deixar de mostrar as consequências da agressão, não a suspensão dos efeitos dela, como tem ocorrido com frequência desde então.
Se não bastasse sua importância estética em si, sua pertinência histórica no tratamento da questão dos indígenas e do direito à terra, o filme teve uma importância ampla para o cinema brasileiro a partir de 2006, com seu trânsito entre ficção e documentário, uma das grandes características dos filmes do período.
Carapiru é interpretado pelo próprio índio da vida real. Outros personagens fazem seus próprios papéis na vida. Não há atores profissionais. Há auto-ficção e atores sociais. Os termos foram caros aos segmentos autorais recentes no Brasil. O desejo de partir da realidade para fazer ficção e de voltar com a ficção à realidade é um dos emblemas de muitos diretores atuais.
O filme também salienta outro traço forte do cinema brasileiro de tempos em tempos, o deslocamento do protagonista, como foi nos anos 60 e como tem sido nos anos 2000. Corpos em movimentos por diferentes espaços a partir de uma fuga ou de uma busca. Essa tem sido a tônica de uns tantos filmes. Essa é a regra em Serras da Desordem.O filme é um emblema e uma síntese do período 2005/2015
Tonacci já era cineasta com lugar especial na história do cinema brasileiro por conta, se não de toda a sua filmografia, certamente de ao menos outros dois filmes, o longa Bang Bang e o curta Bla Bla Bla, provocações típicas do fim dos anos 60, com uma subversão estética e política absolutamente em sintonia com a reatividade debochada e descrente do cinema brasileiro autoral daquele momento. Também serão exibidos na Mostra de Tiradentes  os dois filmes
Se o cineasta andou por fora das telas de cinema desde os anos 70, retornando somente com Serras da Desordem, isso diz muito de como os espaços fílmicos no Brasil, mesmo quando se trata de um dos seus maiores autores, são tratados com descaso e sem reconhecimento de mérito. Em uma cinematografia de baixa média etária, como a brasileira nos anos após 2006, o sábio e mestre Tonacci deve ser visto e ouvido de joelhos.