O Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, (CSEGSF/ENSP/Fiocruz) promoveu, ao final de 2018, o seminário A Atenção Primária à Saúde e os efeitos do mercúrio na saúde. Na ocasião, estiveram em debate a Convenção de Minamata, a vigilância de populações expostas, a gestão de resíduos odontológicos em unidades de saúde, o uso da restauração de amálgama em consultórios do Rio de Janeiro, entre outros assuntos. A atividade contou com a participação de pesquisadores da ENSP, do Ministério da Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outras instituições. As apresentações estão disponíveis no Canal da ENSP, no Youtube. Confira a playlist!
A professora e pesquisadora do Departamento de Endemias Samuel Pessoa (Densp/ENSP), Sandra Hacon, deu início à sua fala apresentando a Convenção de Minamata. Trata-se de um acordo internacional que objetiva proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões e liberações de mercúrio e de seus compostos por meio de um processo de negociação global. Segundo a professora, a partir da Decisão 25/5 UNEP/GC, de 2009, os governos foram convocados a elaborar um instrumento legalmente vinculante para o controle do uso de mercúrio, visando proteger a saúde humana e o meio ambiente.
Em 2013, o Brasil assinou um acordo de cumprimento das propostas de diminuição do uso do mercúrio até 2020. O Decreto entrou em vigor em todo o território nacional em agosto de 2018. Em outubro de 2018, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu suspender os registros para fabricação ou venda de termômetros e medidores de pressão contendo mercúrio. Isso deveria acontecer em todo o território nacional a partir de 1º de janeiro deste ano (2019).
Sandra abordou, também, o uso do mercúrio no garimpo da Amazônia. Ela explicou que as perdas de mercúrio (Hg) para solos e/ou rejeitos no Brasil atingem 60 toneladas, e a emissão diretamente para a atmosfera resulta em 161,5 toneladas, totalizando 221,5 toneladas perdidas para o meio ambiente, ou seja, 70% são emitidos diretamente para a atmosfera e 30% perdidos para solos, águas e/ou rejeitos.
O seminário A Atenção Primária à Saúde e os efeitos do mercúrio na saúde foi realizado nos dias 29 e 30 de novembro de 2018. O segundo dia do evento contou com a participação do presidente do Conselho Regional de Odontologia (CRO-RJ), Outair Bastazini, e foi marcado pelas questões éticas e a saúde de pacientes e profissionais a respeito do uso do amálgama. Apesar de, na odontologia, não existir um consenso a respeito do uso ou não do produto, foi debatida a importância de, na Atenção Primária, o paciente estar ciente de tudo a que está sendo submetido.
A primeira palestra da manhã foi sobre bioética, um campo da filosofia que analisa os argumentos morais, a favor e contra determinadas práticas humanas, afetando a qualidade de vida e o bem-estar dos humanos e de outros seres vivos, a qualidade de seus ambientes e a tomada de decisões.
Para falar dessa questão, o convidado foi o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da ENSP, Sergio Rego. Ele disse ser um grande desafio fazer essa abordagem a respeito do uso do amálgama com as boas práticas e apresentou a seguinte reflexão. “Até que ponto, efetivamente, a gente tem uma preocupação com a ética em nossas ações?”, questionou o pesquisador. Para esclarecer essa diferença entre a moral e a ética, ele explica que, a moral se refere às normas de conduta vigentes (intuitivas e “vindas de fora” do indivíduo), e a ética refere-se às normas cultas resultantes de exercício da razão crítica.
Três pontos são necessários para reconhecer uma questão como pertencente ao campo da moral. São eles: a linguagem moral - tudo aquilo que possa ser considerado certo ou errado, justo ou injusto; os princípios categóricos - aqueles que farão você agir sempre corretamente (faça aos outros aquilo que você gostaria que fizesse a você); e o reconhecimento social - aquilo que uma sociedade percebe sobre um problema moral. Esses pontos podem ser vistos pelo movimento cultural e artístico, por exemplo.
O professor alerta que os profissionais de saúde têm que ter uma percepção do que é eticamente correto daquilo que é eticamente aceitável. Ele expõe quais atos devem ser considerados. “Não é porque eu estou usando o melhor da técnica que, necessariamente, essa ação é ética. E o que os novos tempos trazem são mudanças de perspectivas. Você não deve olhar apenas para a moralidade do agente, mas, também, para a moralidade dos atos. Os atos precisam ser justificados e cumpridos”, disse ele, encerrando com outra reflexão, “Como você gostaria que todos fossem tratados se fossem todos seus familiares?”.
Sergio finalizou orientando que a falta de reflexão para o uso de tal procedimento pode gerar custos muito altos. “Os danos podem incluir não só problemas físicos, mas também emocionais, financeiros e desprezo a valores realmente relevantes. E devemos pensar: "Existem casos semelhantes que podem ajudar a tomar minha decisão? A minha decisão me deixa confortável comigo?”, questionou o professor.
A decisão ética tem como primeiro ponto reconhecer a dimensão moral das questões, identificar quais os conflitos entre dois ou mais valores ideais, quais as questões efetivas estão em jogo para tomar uma decisão. No caso do amálgama, que tem seu uso defendido há mais de 150 anos, a repetição da escolha pelo metal é tão rotineira que muitos profissionais não fazem uma reflexão sobre as implicações que isso pode causar e nem pensam em outros métodos.
A importância da Epidemiologia na Atenção Primária
“A epidemiologia trabalha sempre com a probabilidade de ocorrência da relação de algum fator com o aparecimento da doença.” Essa foi uma das falas do médico e professor titular da Faculdade de Medicina Ciências em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Volney Câmara, que mostrou os desenhos de estudos epidemiológicos relacionados ao uso do amálgama na Atenção Primária, já que sua linha de pesquisa principal é o efeito do mercúrio. O professor disse que o metal é o mais agressivo para o ser humano e lembrou que iniciou as suas pesquisas em 1978, após uma denúncia de funcionários de uma fazenda. “O grande problema aqui é o remédio vermelho”, disse um dos trabalhadores do local, despertando o interesse do professor pelo mercúrio. Ele lembra que as pessoas que trabalham na Atenção Primária desenvolvem um trabalho importantíssimo, impedindo possíveis doenças.
Para iniciar a pesquisa com o mercúrio, toxicologia é fundamental. A análise de como o mercúrio está no ambiente, como essa substância penetra no nosso corpo (se ela é armazenada e como é eliminada), quais os primeiros sintomas que aparecem, caso haja contaminação, a análise clínica são as quatro etapas básicas para obter um estudo. Outro fator que influencia na pesquisa é a forma do mercúrio utilizado, podendo alterar ou não o desenho do estudo. Os tipos de mercúrio mais utilizados para essas análises são o mercúrio inorgânico (mercúrio metálico), que têm seu monitoramento feito pela urina e o metilmercúrio, em que o melhor monitoramento ocorre pelo cabelo.
Os estudos disponíveis para realizar esse monitoramento são diversos, tendo sido destacado pelo professor alguns deles. O estudo de exposição mede a taxa de contaminação de determinada população. “Exposição não quer dizer que a pessoa tem o efeito. O efeito é um diagnóstico clínico tanto do médico como do psicólogo. A dosagem do mercúrio é que vai dizer se você está ou não exposto”, salientou o professor. O estudo descritivo vai apresentar como esses efeitos aparecem na população. Quais as faixas etárias mais atingidas, qual o local da população mais afetada, quais os fatores que mais predominam. Esse estudo pode ser dividido em dois tipos: por incidência, designado como caso novo; e o estudo de prevalência, isto é, todos os casos já existentes, não importando se a doença surge no período do estudo ou se ela já estava presente.
Os analíticos mais aprofundados são estudos que testam hipóteses. Ele associa algum efeito da saúde relacionado ao mercúrio, e não existe consenso na literatura sobre ele. Estudos seccionais são estudos de um grupo exporto e um grupo controle que consiste em pegar um grupo com e sem a doença e, depois, investigar se há uma diferença estatística em relação ao principal meio de pesquisa. E o último, o estudo de coorte, consiste em um grupo de pessoas expostas e outro de pessoas não expostas, em que você segue essas pessoas durante anos para ver o aparecimento de alteração hematológica em cada grupo, verificando se há diferenças significativas.
O uso do amálgama na odontologia
Os desafios no uso e remoção do amálgama na atenção primária, foi o tema proposto para um debate com participação de Martha Faissol, diretora da IOMT - Brasil e por Marcia da Rocha, da Estratégia de Saúde em Família de Itaguaí – RJ. A primeira a falar, Martha, relembrou a ética no ambiente dos consultórios. Mesmo não tendo o uso do amalgama em sua rotina, ela busca abolir o mercúrio do mercado odontológico não apenas por ser uma obturação tóxica, mas por causar, também, um problema ocupacional. “Eu descobri, ao longo dos meus estudos, que eu era uma dentista livre de mercúrio, mas não era uma dentista segura em relação a ele.”, enfatizou ela, mostrando, através de estudos, quais os cuidados devem ser tomados para obter um ambiente livre dos males do metal líquido.
Ela presentou um vídeo no qual mostra a evaporação do mercúrio em um dente com obturação de amálgama e que pode durar anos. Isso ocorre devido à mudança de temperatura que temos na região bucal e o atrito diário. Para demonstrar sua preocupação, a dentista apresentou as higienes e os cuidados com o mercúrio que os dentistas deveriam ter em sua rotina. “Nós não queremos que esse produto chegue até a rede dos esgotos, mas deixamos ele chegar dentro do nosso bem mais precioso que é a nossa saúde.”, destacou Martha Faissol, lembrando que o metal é altamente tóxico à inalação, pode causar dano ao feto, letal ou mortal, e, a longo prazo, a exposição do material pode causar danos à saúde entre outros malefícios.
Um dos principais problemas enfrentados é a substituição do amálgama na rede pública de saúde. “Já existem trabalhos que comprovam que a substituição do mercúrio no sistema público, por resina ou vidro, sai mais barato que a utilização do amálgama, já que a obturação com o mercúrio é uma das mais caras do mundo”, alertou a odontóloga que defende veementemente o banimento do tratamento e sugere a criação de um protocolo para maior segurança das pessoas que manipulam o material. “Não é jogar o problema e sair correndo dizendo resolvam. A gente pode desenvolver um protocolo básico de proteção. Muito difícil qualquer investimento ser mais caro que os problemas que estamos gerando, em termos de doenças crônicas para a saúde pública”, finalizou.
Marcia da Rocha, que trabalha na Estratégia de Saúde da Família de Itaguaí, no Rio, e foi uma das coordenadoras científicas da Rio Eco 92, disse defender a saúde pública. “Eu devo pensar, ‘qual material devo usar?’ ou ‘Qual o material é o melhor para o paciente’?”, questionou ela. Com sua vasta experiência no SUS, Marcia falou sobre os serviços na Rede Pública de Saúde alertando sobre os serviços oferecidos e a dificuldade de encontrar os procedimentos que existem na rede privada e na rede pública.
“Tenho que trabalhar de acordo com a realidade do meu país, de acordo com o que a Anvisa específica”, destacou. Apesar de toda a polêmica envolvendo o uso do amálgama, ela orienta sobre a Atenção Primária mostrando que é este o momento de descobrir o tipo de paciente no qual está sendo realizado o tratamento e, a partir daí, usar o bom senso para escolher os procedimentos a serem realizados. “O material a ser utilizado tem que ser o melhor para o profissional e para o paciente”, concluiu.
O principal objetivo é desospitalizar. Para isso, é necessário um primeiro atendimento de qualidade e que atenda a toda a população. Para isso acontecer, a participação do paciente é fundamental para um planejamento de qualidade. “Não se faz promoção de saúde sem prevenção, sem participação social e sem acordo político. Se não houver isso, não vamos chegar em lugar nenhum. Como tudo está interligado, não podemos agir contra o meio ambiente”, enfatizou a odontóloga.
Um dos principais problemas enfrentados hoje no Brasil é a forma de descarte das obturações de amálgamas. O descarte, na maioria das vezes, não é feito da forma correta, e isso prejudica, e muito, o meio ambiente, já que, chegando à rede de esgotos, pode causar problemas gravíssimos. “Se eu protejo o paciente, eu protejo o ambiente. Precisamos ter um plano de gerenciamento de resíduos, fiscalizado pela vigilância sanitária. O maior erro é o descarte de resíduos”. Ela sugeriu à ENSP formar um polo de proteção ambiental. Um polo de cuidados paliativos com a integração em atenção básica, o Hospital e a Estratégia da Saúde da Família.
Finalizando, Márcia lembrou que o importante não é a escolha do material, e sim a escolha que possa reabilitar o paciente, seguindo as determinações da Anvisa e respeitando o gerenciamento de resíduos e o meio ambiente.
*Thamiris de Carvalho é estagiária de jornalismo da Coordenação de Comunicação Institucional da ENSP.
*Tatiane Vargas é jornalista da Coordenação de Comunicação Institucional da ENSP.