O jornal Valor Econômico publicou, no último dia 18, uma reportagem sobre os riscos que a falta d'água pode trazer à saúde fazendo ressurgirem doenças consideradas erradicadas nas grandes cidades. Uma das entrevistadas pelo jornal carioca foi Bianca Dieile, pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da ENSP. Bianca lembrou que, no caso de São Paulo, as autoridades demoraram para dar informações sobre a escassez. Assim, não foi possível fazer um bom planejamento afim de evitar o armazenamento inadequado da água. A pesquisadora falou ainda sobre a situação das populações de baixa renda, que já convivem há tempo com a falta d'água e suas consequências para a saúde. Veja abaixo a íntegra da reportagem.
Falta de água e higiene precária podem trazer doenças 'antigas' de volta às cidades
18 de fevereiro de 2015
A falta de água e a dificuldade de higienização decorrentes da seca que atinge os reservatórios da região Sudeste devolvem ao radar da saúde pública a necessidade de prevenir doenças que já eram consideradas erradicadas nas grandes metrópoles, como tifo e cólera. O armazenamento improvisado de água nas residências também aumenta e eleva o risco de enfermidades tradicionalmente comuns no verão: dengue, febre chikungunya e rotavírus, além de diversos tipos de diarreia e hepatites A e E. "De repente, estamos voltando no tempo com doenças supostamente eliminadas no século retrasado", diz Pedro Mancuso, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Segundo ele, um ambiente sem água é, do ponto de vista das políticas públicas de saúde, um retrocesso que expõe a população a patologias comuns por volta de 1800, época em que o pesquisador John Snow descobriu, no Reino Unido, que a água transmitia doenças. "O pior dos mundos é a falta de água. Quando você tem água, mesmo de qualidade duvidosa, você pode fazer alguma coisa em casa. Agora, com água zero, não tem o que fazer", diz Mancuso.
Christovam Barcellos Netto, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), trabalhou como sanitarista das secretarias estaduais de Saúde do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Para ele, o principal risco em cidades sem água, ou com racionamento drástico, é que doenças que hoje ocorrem isoladamente ganhem mais poder de transmissão, como no caso da febre tifóide e cólera.
"Essas são doenças muito relacionadas à falta de higiene. O cólera é o pior que pode ocorrer. É o pior cenário, mas o radar da saúde pública tem que estar atento para isso sim", afirma Barcellos, que descarta epidemias generalizadas, mas casos isolados e surtos em pequenas comunidades. "Atualmente, a pessoa que fica doente vai tomar banho, se lavar. Mas, se não houver condições mínimas de higiene, a doença vai se transmitir."
A pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Bianca Dieile, diz que a falta de informação sobre as reais condições de abastecimento das cidades, principalmente em São Paulo, impediu um planejamento adequado, que poderia evitar algumas doenças. "Se soubéssemos há seis meses que haveria falta de água, talvez pudéssemos nos organizar melhor, comprando uma cisterna de coleta de chuva de maneira adequada, por exemplo. Agora, está todo mundo desesperado, porque foi avisado uma ou duas semanas antes do racionamento, principalmente em São Paulo", diz Bianca, referindo-se às declarações feitas no fim de janeiro por Paulo Massato, diretor da Sabesp, sobre a possibilidade de São Paulo adotar um esquema de rodízio com cinco dias sem água e cinco com fornecimento.
O armazenamento precário da água da chuva, diz Mancuso, abre caminho para bactérias, vírus, parasitas, toxinas ou metais pesados, entre outros agentes causadores de doenças. No caso de mecanismos improvisados para captar a água pelo telhado, há três preocupações principais: a possível sujeira do recipiente que guardará a água; a sujeira do telhado, por onde passam insetos, ratos, animais, e grande volume de poluição e fumaças tóxicas; e as substâncias contidas na água da chuva, especialmente em São Paulo, onde existe o fenômeno da chuva ácida. "A poluição que sai das chaminés das fábricas e empresas e dos escapamentos de veículos carrega algumas substâncias letais e isso vai para o ar, acaba indo para o telhado", alerta o especialista. "Se a pessoa tiver o cuidado de desprezar a primeira água, tirar folhas, usar uma peneira, pode melhorar um pouco", diz Mancuso. Ferver a água, segundo o professor, é recomendado apenas para eliminar microorganismos. Não serve, por exemplo, para proteção contra a acidez da chuva.
"Essa acidez você não tira com filtro, nem fervendo", diz Mancuso. O uso do cloro, embora eficaz, não é recomendado, porque, em doses erradas, pode causar intoxicação e danos à saúde. "A emenda pode sair pior que o soneto."
Nem o álcool gel, aliado comum em tempos de escassez, pode substituir o efeito de água e sabão. "O poder desinfetante do álcool gel é baixo. Além disso, só pode ser usado depois que as mãos já estão limpas, necessitando apenas uma desinfecção final. Ajuda, mas está longe de substituir a água", explica Mancuso.
Bianca destaca que a dificuldade de prevenir tais doenças é ainda maior entre a população mais pobre onde a escassez já é uma realidade mais antiga. "Há famílias na Baixada Fluminense que já fizeram caixas d'água com capacidade de 5.000 mil litros, embaixo da casa. Dificilmente ela vai ser limpa como uma caixa d'água normal", diz a pesquisadora.
Silvia Costa, professora do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP, diz que a falta de água elevará também os riscos para pacientes nos hospitais. "O racionamento de água pode levar ao aumento das infecções hospitalares, pois a higiene das mãos, banho do paciente e limpeza do ambiente, que dependem diretamente da água, são medidas básicas para a qualidade do atendimento."
Muitos hospitais, segundo Silvia, já têm planos de contenção e estão discutindo a sustentabilidade dessas medidas. "Mas os hospitais públicos, que costumam trabalhar com um orçamento apertado, enfrentarão obstáculos para programar tais medidas", diz a professora da USP.
Outro perigo, alerta Barcellos, da Fiocruz, é a falta de controle de qualidade sobre as diversas fontes de onde, em meio à crise, a população busca água: caminhões-pipa, garrafões não inspecionados, água da chuva e até poços improvisados. "As secretarias de Saúde, municipais e estaduais, são responsáveis por um programa de vigilância da qualidade da água. Eles têm que reforçar esse programa, urgentemente", diz.
Procuradas pelo Valor, as secretarias estaduais de Saúde dos Estados de São Paulo e do Rio afirmaram que a vigilância da água é responsabilidade das secretarias de cada município. Afirmação parecida fez o Ministério da Saúde que informou, em nota, que "a fiscalização cabe às secretarias municipais de Saúde, com o apoio das secretarias de Estado da Saúde, que reportam ao ministério qualquer incidente que represente risco à saúde pública".