No Dia Mundial das Hepatites Virais, lembrado em 28 de julho, a Revista Radis, da Escola Nacional de Saúde Pública, alerta que a hepatite C já causa mais mortes do que a aids nos Estados Unidos, segundo relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês, órgão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos) publicado no fim de fevereiro noAnnals of Internal Medicine. A pesquisa americana concluiu que a taxa de mortalidade por hepatite C aumentou de 3 por 100 mil em 1999 para 5 por 100 mil em 2007, enquanto a por doenças relacionadas à aids caiu de 6 por 100 mil para 4 por 100 mil no mesmo período. Apesar de localizada espacialmente, a pesquisa aponta uma possível tendência em países que investiram para oferecer diagnóstico e tratamento públicos para portadores do HIV, o que aumentou o tempo de vida pós-infecção. A hepatite C, por outro lado, ainda não conta com assistência semelhante em grande parte do mundo, incluindo o Brasil. Entre outras razões, pesa o fato de se tratar de uma doença silenciosa e silenciada - que não apresenta sintomas e é muito pouco divulgada.
“É uma questão mundial, cuja rede de atenção está na fase de organização”, avalia o coordenador da área de Cuidado e Qualidade de Vida do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, Ronaldo Hallal. “Mesmo o Reino Unido, referência em sistema de saúde, conseguiu diagnosticar e tratar poucos até agora”. A visibilidade e a mobilização em torno da doença são novidades: “É recente essa movimentação mais ampla dos organismos internacionais e dentro dos próprios países para enfrentar a hepatite C”, diz Hallal. Nesse meio tempo, a doença segue cercada por desconhecimento. O plano de enfrentamento do governo americano reconhece que grande parte dos seus profissionais de saúde não conhece a doença.
São cinco os principais tipos de hepatite viral: A, B, C, D e E. No Brasil, as quatro primeiras são as mais frequentes. “As infecções por hepatite B e C são dez vezes mais numerosas que as por HIV, portanto, em termos de saúde pública, o impacto delas é muito maior”, compara a pesquisadora do Laboratório de Hepatites Virais do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) Lia Lewis. “O problema da hepatite C é justamente o fato de ser silenciosa”, diz. Explica-se: a doença é assintomática e a maioria dos infectados não sabe de sua condição; logo, não procura assistência. E, em termos de mídia, pouco se fala sobre ela. “É raro um paciente chegar ao nosso ambulatório conhecendo a hepatite C”, conta Lia.
Problema de saúde pública
Entre 130 milhões e 170 milhões de pessoas, o equivalente a 3% da população mundial, estão infectadas com o vírus da hepatite C no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que trata a doença como um grave problema de saúde pública. A cada ano, são registrados de 3 milhões a 4 milhões de novos casos e 350 mil mortes. Alta prevalência é encontrada no Egito (22%), Paquistão (4,8%) e China (3,2%), especialmente em decorrência do uso de seringas contaminadas.
No Brasil, foram confirmados 69.952 casos entre 1999 e 2010, de acordo com o Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais 2011, do Ministério da Saúde. Desse total, 98,3% são crônicos. A hepatite C foi a causa básica de 14.873 mortes no país de 2000 a 2010, superando os óbitos por hepatite B (4.978), A (608), D (264) e E (48). Quando levadas em conta as causas associadas, chega-se ao número de 27.231 mortes por hepatite C, 8.641 por B, 819 por A, 377 por D e 81 por E.
Entre 65% e 75% das infecções por hepatite C aconteceram durante procedimentos em hospitais, clínicas ou consultórios médicos e odontológicos, como transfusão de sangue ou de hemoderivados, transplante de órgãos, injeção com seringa e ferimentos causados por seringas contaminadas, informa Lia. “No passado, em algumas unidades de hemodiálise, chegou-se a identificar a doença em quase 100% dos pacientes”, conta.
A maior parte dessas infecções se deu antes de 1993, quando tornou-se obrigatório o teste para detecção de anti-HCV (vírus da hepatite C) na triagem sorológica dos bancos de sangue brasileiros, informa o pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) Francisco Inácio Bastos, autor do livro O som do silêncio da hepatite C (Editora Fiocruz). Medidas como essa, de controle da qualidade dos bancos de sangue, foram introduzidas a partir de 1988, para evitar a expansão da epidemia de aids. “A maior parte dos infectados tem cerca de 50 anos: é um grupo que se contaminou antes que a aids mudasse o péssimo controle de banco de sangue no Brasil”.
O Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais 2011 confirma que a maior proporção de casos de hepatite C confirmados entre 1999 e 2010 encontra-se na faixa etária de 40 a 59 anos, somando 54,4% do total. As taxas de detecção mais elevadas estão na faixa etária de 50 a 59 anos, seguida do grupo de 40 a 49 anos de idade.
Novos casos, infectados depois de 1993, têm ligação com o compartilhamento de material para uso de drogas (seringas, agulhas, cachimbos), higiene pessoal (lâminas de barbear e depilar, escovas de dente, alicates de unha) ou para confecção de tatuagem e colocação de piercings, todos passíveis de prevenção. “Qualquer sangramento tem chance de transmitir hepatite C se os equipamentos não tiverem sido esterilizados”, alerta Francisco. “E muitos dos centros de tatuagem e piercing não são certificados, operam de forma ilegal”. A transmissão por contato sexual é rara, mas possível.
Diagnóstico
Um dos principais desafios na atenção à hepatite C é o diagnóstico: a maioria das pessoas infectadas não sabe que tem o vírus. O surgimento de sintomas é raro, daí o fato de ser classificada como doença silenciosa. Quando aparecem, os sintomas são inespecíficos: cansaço, tontura, enjoo e/ou vômitos, febre, dor abdominal, pele e olhos amarelados, urina escura e fezes claras.
“Por ser uma doença assintomática e silenciosa, pode evoluir por 10, 20, 30 anos sem que o paciente apresente sintomas. Ele acaba não procurando atendimento médico e, quando tem ciência da doença, já está em estágio muito avançado, com cirrose hepática ou câncer de fígado”, resume a vice-presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia, Maria Lúcia Ferraz. “Quanto mais cedo se diagnostica, mais opções de tratamento e mais chance de cura”.
Teste rápido
Um hemograma completo não indica a presença de hepatite. É preciso passar por um exame anti-HCV e confirmá-lo por métodos mais precisos. O acesso a esses exames, no entanto, não é fácil no Brasil. “O teste rápido para HIV é muito comum, mas o das hepatites B e C é difícil de ser encontrado no SUS, mesmo se tratando de uma doença assintomática não detectável no hemograma”, aponta Carlos Varaldo, que fundou o Grupo Otimismo de Apoio a Portadores de Hepatite C e escreveu dois livros sobre o tema depois de se curar da doença.
Francisco Inácio Bastos lembra que há muitos anúncios para testagem de aids, mas nunca uma mobilização compatível para a testagem da hepatite C: “Vai se formando a cultura do silêncio, um pacto de não se falar sobre a doença”.
A dificuldade do diagnóstico se reflete no acesso ao tratamento. Dos 600 mil infectados pelo HIV, 70% deles estão diagnosticados e 200 mil em tratamento. Dos 3 milhões de infectados pela hepatite C - “em um cálculo otimista”, segundo Carlos Varaldo - apenas 11,5 mil estão em tratamento. A proporção, na aids, é de 1 em cada 3 em tratamento; na hepatite C, de 1 a cada 290. “É uma disparidade muito grande”, critica.
Um passo para mudar esse quadro foi a decisão do Ministério da Saúde de oferecer testes rápidos para a detecção das hepatites B e C, a partir de agosto de 2011, inicialmente nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) das capitais, estruturas criadas para a aids, com previsão de chegarem a unidades básicas de saúde.
“O teste rápido não é bom somente por ser rápido: ele não exige equipamentos e pessoal especializado, é prático, de simples execução”, explica Lia. Esses testes servem para triagem; caso o resultado seja positivo, o paciente deve ser encaminhado para a rede de saúde para ter seu diagnóstico concluído.
O ministério também centralizou a compra dos exames complementares, de biologia molecular, como carga viral e genotipagem, e ampliou de 16 para 38 unidades a rede de laboratórios que os realizam. A centralização da compra possibilita a redução de custos, que variam de R$ 80 a R$ 298 por exame, e amplia a cobertura para um número maior de pessoas.
Hepatite e aids
A oferta do teste rápido para hepatite C nos Centros de Testagem e Aconselhamento é um resultado concreto da incorporação do Programa Nacional das Hepatites ao Departamento de DST/Aids, em outubro de 2009. “Existem recomendações internacionais para que os governos integrem as respostas programáticas de DST, aids e hepatites virais”, informa Ronaldo Hallal.
Todas são doenças de causa viral, que não apresentam sintomas durante alguns anos e cujo diagnóstico precoce tem impacto no acesso ao tratamento e na taxa de mortalidade. As comparações entre aids e hepatite C são comuns na bibliografia sobre a doença e nas palavras dos profissionais ouvidos pela Radis. Todos citam a forte mobilização social em torno da aids como a principal razão de a doença contar hoje com uma rede elogiada internacionalmente.
“A resposta mundial à aids é única na história das epidemias: houve uma mobilização social, com o apoio de personalidades e formadores de opinião, que comprometeu os governos”, afirma Hallal.A hepatite C não contou - e ainda não conta - com mobilização similar. “Quando surgiu, a aids matava rapidamente e atingia pessoas mais dispostas a se expor para exigir tratamento adequado; a hepatite C não mata rapidamente, tinha num número muito pequeno de diagnosticados e até hoje é desconhecida, então não houve luta”, resume Carlos Varaldo.
A incorporação da estrutura gerencial das hepatites virais ao departamento de aids divide opiniões. Representante do Ministério da Saúde, Ronaldo Hallal avalia que a integração é natural: “Em geral, no mundo, a resposta à aids se estruturou com estratégias de prevenção, diagnóstico, implantação de serviços e assistência das pessoas que vivem com HIV, e as hepatites podem se beneficiar dessa rede”.
Debaixo do tapete
Para o representante dos pacientes Carlos Varaldo, o Ministério da Saúde “esconde a doença debaixo do tapete”. A face mais visível para o público desse cenário, segundo Varaldo, é a quantidade de campanhas sobre aids divulgadas pelo ministério em comparação com as sobre hepatites - muito mais frequentes e numerosas.
O pesquisador Francisco Inácio Bastos observa que uma fusão demanda parceiros em situações parecidas para funcionar bem, o que de acordo com ele não é o caso. “Há um parceiro rico, o HIV, e o parceiro pobre, a hepatite, o que gera uma relação complicada”, diz, referindo-se ao volume de recursos - inclusive de financiamentos internacionais - destinados ao cuidado com o HIV. “A decisão seria boa caso a aids puxasse a hepatite para cima, mas falta recurso e pessoal para que isso se concretize”.
Hallal afirma que a pasta está buscando considerar as particularidades das hepatites para apresentar à sociedade uma resposta específica, aproveitando o acúmulo no combate ao HIV e a rede formada para atender os portadores da doença. O coordenador da área de Cuidado e Qualidade de Vida do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais reconhece que a rede de atenção à doença no Brasil é restrita, altamente concentrada nos hospitais universitários e nos centros de hepatologia. A integração com a rede de aids, diz, muda esse quadro.
“Praticamente nenhum estado brasileiro oferece tratamento no interior: o paciente precisa ir até a capital, o que, em alguns lugares, demanda dias de viagem”, critica Varaldo. A maior dificuldade, conta, é ter acesso à biópsia que aponta a extensão dos danos ao fígado: o tempo de espera pode chegar a um ano e meio no SUS, segundo ele. Bastos reforça que o SUS tem poucos centros com profissionais capacitados, fato que se agrava dada a dificuldade de manejo dos pacientes crônicos e a medicação dispendiosa associada a muitos efeitos adversos.
Tratamento
O tratamento atual é baseado na combinação de dois medicamentos, o Interferon peguilado e a Ribavirina, com duração de seis meses a um ano. Ambos são fornecidos pelo SUS. A chance de cura (quando o vírus passa a ser indetectável de forma sustentada) é de até 56%. “Não é um tratamento simples, pois provoca efeitos colaterais, mas é finito”, diz Maria Lúcia Ferraz. Passadas algumas horas da aplicação de Interferon, os pacientes relatam sentir sintomas parecidos com os de uma gripe de extrema intensidade: febre e dor no corpo. Alguns chegam a suspender a medicação para evitar o desconforto, o que compromete todo o tratamento.
O ministério estuda a incorporação de dois medicamentos cujo uso foi aprovado recentemente por agências internacionais: Boceprevir e Telaprevir. Ambos aumentam as chances de cura para até 75% e são apresentados em comprimido - enquanto o Interferon é injetável. Como o lançamento é recente, a expectativa é de que sejam oferecidos pelo governo apenas em casos graves. “Estamos discutindo internamente, com bastante cuidado, a pertinência de incorporação, considerando os preços abusivos registrados no Brasil e o fato de não terem sido experimentados na população brasileira”, informa Hallal.
Francisco Inácio Bastos, que se diz um “otimista cauteloso”, prevê cuidado melhor com a doença em dez anos: passado um período de implementação de novas medidas de controle da hepatite C, o número de novos casos deve diminuir, refletindo as medidas de segurança dos bancos de sangue, e a rede de tratamento deve se expandir. “É um desafio qualificar o serviço, mas, se o SUS é baseado na integralidade, tem que cumprir seu papel”, considera.
*Por Bruno Dominguez é jornalista da Radis