Num quadrinho publicado há alguns anos, o cartunista carioca André Dahmer desenhou um morador de rua vestindo-se com galhos e folhas. O personagem, diante da cara de interrogacão de outro morador de rua, explica tratar-se de uma estratégia para convencer um grupo de pessoas que estão às suas costas a lhe dar atenção e comida . No grupo a que ele se refere, estão homens e mulheres que, de mãos dadas, abraçam uma árvore. A imagem, ainda que carregada da ironia e mordacidade que marcam os desenhos de Dahmer, chama atenção para uma questão atual: mesmo com toda popularização dos discursos e pesquisas que tratam da necessidade de se rever as formas de exploração da natureza, ainda há muita dificuldade de se estabelecer, no senso comum, os elos entre esses modelos exploratórios e os danos que causam à vida humana. Como nos filmes de ficção científica dos anos 70, que preconizavam carros voadores para este início de milênio, o aquecimento global, a falta d’água, entre outras tragédias, foram, durante muitos tempo, encarados como algo hipotético, profecias apocalípticas que talvez se concretizassem num futuro distante. Mas uma folheada nos jornais do dia mostra que a conta chegou. Diante da escassez de água, mortes causadas pela poluição atmosférica e indícios claros de mudanças no clima, mais do que o apelo sentimentalista das boas causas, são urgentes trabalhos que tornem visível, por diferentes métodos, a inviabilidade econômica da exploração predatória dos recursos do planeta. A tarefa é complexa: como demonstrar que um negócio que vai de vento em popa precisa mudar seu método de produção? Como calcular a riqueza que deixou de gerar um rio que se extinguiu? Qual o preço de um besouro? Existe matemática que dê conta do que se perde quando toda uma etnia é exterminada? Essas perguntas, que mais parecem charadas, foram algumas das respostas abertas que três pesquisadores da Fiocruz deram ao Informe ENSP, numa conversa sobre os custos da poluição.
Ary Miranda nos recebeu numa manhã atípica para fevereiro em Manguinhos. Às onze horas da manhã, estava relativamente fresco na sala 2 do Cesteh, o Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, da ENSP. Era véspera de carnaval, mas a luz natural sob a qual se trabalhava dava um ar de calmaria ao lugar. Sem destoar do ambiente, o pesquisador respondeu às nossas perguntas com a paciência de quem gosta de contar histórias do começo: "Os impactos sobre o meio ambiente, decorrentes dos processos produtivos, têm início há 11 mil anos, quando o homem, de caçador-coletor, se fixa à terra e, através da agricultura e da pecuária, passa a produzir os alimentos necessários à sua subsistência. Mas, por sua escala produtiva e tecnologias utilizadas, seus impactos sobre o ambiente não tinham significado. Afinal, era um mundo rural e localizado, cuja produção se dava apenas para atender às necessidades humanas. Assim foi até o advento do capitalismo, sistema que não se orienta por nossas necessidades, mas pela saga da acumulação de riquezas para aqueles que detém a propriedade dos meios de produção, o que exige escala produtiva sistêmica e tecnologias que respondam à essa demanda produtiva. A consolidação deste sistema impôs toda a sorte de agressões socioambientais com impactos que, a partir da segunda metade do século XX, assumem dimensões ameaçadoras ao próprio sistema. Se observarmos os chamados movimentos naturalistas, que aconteceram no final do século XIX, início do século XX, eram todos assim: preservação de parques e de algumas espécies de pássaros e outros animais. Eles não tinham como um foco o impacto sobre a vida humana e os bens da natureza".
Calcular esses impactos, buscar métodos para traduzi-los em números, tem sido o objetivo de diversos estudos feitos pela pesquisadora do IOC Martha Barata. Martha, que é doutora em planejamento ambiental, conversou por telefone com o Informe ENSP. O ponto de partida para a entrevista foi uma reportagem publicada no início do ano no jornal O Globo sobre uma pesquisa da universidade americana de Stanford que mostrava que os impactos da poluição vêm sendo subestimados no PIB dos EUA. Perguntada sobre como se dá esse cálculo aqui no Brasil, Martha nos explicou que diversos estudos ainda estão em andamento para que se estabeleça uma forma de incorporar o custo da poluição nas contas nacionais: “Existem estudos e agora o IBGE está trabalhando essa questão no âmbito internacional. Quando você pensa em termos de contas nacionais, tem que haver um acordo entre todos os países, ver como é que se mensura”.
A relação entre o produto interno bruto e fontes de energia sujas ou o desperdício acaba evidenciando contradições, como nos explica Martha: “Você está aí com a escassez de água hoje. Você teve o PIB aumentado quando gerava energia usando essa água. Só que acabou a água, e aí ? Você vai tirar a floresta e fazer o agronegócio? Muito bacana, mas é preciso entender que essa geração de riqueza vai se dar num período curto de tempo. O petróleo é a mesma coisa. Em minha tese de doutorado eu desenvolvi metodologia para mostrar o custo/benefício da poluição do ambiente. O que nós mostrávamos é que esse custo não é evidenciado. Nem sempre fica claro quando se planeja os investimentos nas empresas e então, tecnologias ecoeficientes não são priorizadas. A empresa está poluindo e depois vai arcar com o gasto para tratar a poluição ou o dano causado em momento futuro. Exemplificando, quando a indústria implementa tecnologia para reuso de água tem um investimento inicial que é alto, mas ao longo do tempo isso se diluiu, porque se investiu numa proteção ambiental que depois não incorreu em custo lá na frente - de ter que tratar essa água ou capta-la em outro lugar porque a água acabou”.
A indústria química, poluente por natureza, sequer é a maior vilã quando o assunto é agua. É o que explica o pesquisador do Cesteh/ENSP Marcelo Firpo, que também conversou por telefone com nossa reportagem. A análise de Firpo se concentrou no agronegócio, que hoje corresponde a 20% do PIB brasileiro. “O agronegócio consome 70% da água no Brasil. Existe uma expressão chamada “água virtual” que se refere justamente à quantidade de água que está por trás da produção de uma tonelada de carne, de soja, de cana de açúcar, por exemplo. Fala-se muito da armadilha que o Brasil se meteu quando passou a depender da produção de commodities agrícolas para fazer seu ajuste fiscal e maior equilíbrio na balança de pagamentos. Porque a gente exporta grãos, soja, carne e isso se tornou muito poderoso no congresso nacional, por conta da bancada ruralista e da política fiscal brasileira. Mas o agronegócio tem uma série de externalidades negativas, que são os impactos que não são pagos na cadeia de preços do próprio agronegócio”.
Para Ary Miranda, esse modelo de exploração dos recursos do campo é pródigo não só em produzir carne ou grãos para exportação, mas também em disseminar falácias: “São mitos que são propagados como verdade absoluta, valores insuperáveis. Um deles é o de que que só com essas tecnologias é possível produzir numa escala que atenda às demandas da humanidade. Mentira. 75% dos produtos agrícolas que estão na nossa mesa vêm da agricultura familiar. A agroecologia, comprovada alternativa ao agronegócio, é uma forma de organização da produção agrícola, mas não só. É uma forma de preservação da cultura, da vida, emprega mais e é capaz de produzir alimentos de melhor qualidade. Na lógica produtiva do agronegócio, não se produz alimento, mas mercadorias para exportar e acumular riqueza. Veja por onde vamos com esse modelo pelo relatório da FAO sobre a crise de 2008. O relatório mostrou que um bilhão de pessoas apresentavam algum tipo de deficiência nutricional. Um sétimo da humanidade. A lógica dessa organização produtiva, no âmbito da internacionalização da economia, que submete os países do Sul à condição de produtores de commodities agrícolas e minerais, cujos processos produtivos têm alto impacto socioambiental, nada tem a ver com a necessidade das pessoas. É para atender à sanha de acumulação de capital de grupos transnacionais que, monopolizados, ganham muito dinheiro com isso. Vejamos a indústria de agrotóxico. O Brasil hoje é o maior consumidor do mundo. Gera um consumo na ordem de um milhão de toneladas por ano. São monopólios que se organizam em torno dessa produção e que impõem tais tecnologias, comprovadamente deletérias à saúde humana e ao ambiente em geral, e vendem, além de seus produtos, a ilusão de suas eficácias produtivas. São de seis a oito empresas que dominam o mercado. E o pior: o Estado brasileiro sustenta esse modelo."
O uso de fertilizantes e defensivos químicos estaria entre as causas dos chamados custos indiretos da poluição. Neles, estão contabilizados tanto o custo dos serviços para pessoas que adoecem como o que deixam de render trabalhadores que, por problemas de saúdem precisam parar suas atividades produtivas. No caso específico dos agrotóxicos, Marcelo Firpo aponta uma pesquisa que mostra com clareza esses custos: “Em sua tese de doutorado, Wagner Soares, que é um pesquisador do IBGE que fez o doutorado aqui na ENSP, orientado por mim, fez um estudo bastante interessante com dados do estado do Paraná. Nesse estudo, ele só trabalhou com os dados que são a ponta do iceberg, que é a contaminação aguda. (O efeito crônico, por exemplo, o câncer, não foi considerado). Levando em conta o pior cenário, que era o da produção de milho, o que se concluiu foi que para cada dólar comprado de agrotóxico, 40% a mais eram gastos com a perda da atividade do trabalho somada aos custos do sistema de saúde - que eram os maiores. Se fôssemos considerar os efeitos crônicos para a saúde, esses gastos seriam mais elevados”.
Além do uso de agrotóxico, doenças causadas pelas mudanças climáticas também entram na soma dos custos indiretos da poluição. Num estudo publicado pela The Geneva Association – Risk & Insurance Economics, Martha Barata chegou à cifra de US$ 205 milhões por ano como o valor relativo à tratamento hospitalar e falta ao trabalho causados por doenças relacionadas às mudanças do clima, no Brasil. Nesta conta não entraram as doenças respiratórias, mas males causados pela contaminação da água, como o cólera e também pelo aumento dos vetores, caso da leptospirose e da malária. (Estas doenças estariam ligadas às enchentes). Quando se avalia também o número de mortes, esse valor chega a US$ 600 milhões por ano. Em um capítulo coordenado pela pesquisadora para uma publicação da Universidade de Cambridge, intitulado Mudanças Climáticas e a saúde nas cidades, a vulnerabilidade dos moradores de centros urbanos às doenças surgidas em decorrência de inundações e deslizamentos ou da poluição do ar é analisada no contexto da infraestrutura das cidades. As consequências das mudanças climáticas têm aparecido, ainda, em outras frentes de pesquisa: “Nós estamos fazendo um trabalho de campo, agora, no Nordeste. Identificamos que tem crescido a quantidade de animais peçonhentos. Por que? Pode ser pelo aumento da seca, a mudança na temperatura pode estar ocasionando redução dos sapos, das rãs, batráquios. Há uma alteração no ecossistema e, em consequência, podem aparecer novas doenças e epidemias”.
Como se pode constatar a partir dos estudos citados acima, é sim possível se chegar a métodos que calculem os prejuízos causados tanto pelo mau uso dos recursos naturais quanto por doenças que têm como causa a poluição, mas há ainda uma terceira consequência de se manter uma produção sobre bases sujas, insustentáveis: “Existem valores que têm uma natureza incomensurável. Qual é o valor de uma etnia, de uma vida? A seguradora pode até estimar um preço de mercado, quanto a pessoa produziria, mas isso é sempre limitado. Também é difícil calcular, por exemplo, os custos que se referem à expansão do agronegócio em terras de quilombolas, aldeias indígenas etc. Existe um conjunto de custos que precisam ser calculados, que dizem respeito não só à extinção da biodiversidade, mas também da sociodiversidade”, explica Marcelo Firpo. Tanto Firpo quanto Ary Miranda acreditam que é nessa sociodiversidade que estaria a chave para impasse gerado pelo modelo predatório de exploração da natureza. Os dois pesquisadores coordenam um curso de mestrado que tem por objetivo capacitar lideranças de movimentos sociais que vivem tais conflitos e lutam por sua superação. O norte do projeto é a ideia de que o conhecimento deve ser construído em conjunto com a sociedade e à ela servir. “A ciência moderna sempre ignorou o conhecimento oriundo dos diversos segmentos da sociedade, dos diversos grupos étnicos, sob a justificativa de que não obedecem aos seus preceitos, assim como, em geral, exclui os setores da sociedade a quem deveria estar voltada essa geração de conhecimento. Hoje já há um movimento que questiona essa forma de produzir conhecimento”, conta Ary.
Também falando sobre as possíveis soluções para a questão ambiental, Martha Barata vê no fortalecimento dos métodos de valoração dos recursos naturais uma forma de vencer os embates políticos que impedem a criação de políticas públicas efetivas de sustentabilidade. A pesquisadora citou o exemplo da Noruega, que tem o chamado PIB verde, que contabiliza a importância econômica dos rios, da fauna etc. “Temos que desenvolver a tecnologia para isso. A função da abelha, por exemplo, é um recurso natural, ela produz mel e é importante. Um besouro, é importante”. Também como exemplo bem sucedido de modelo de gestão ambiental, a pesquisadora citou as cidades sustentáveis, o chamado C40, que atua visando reduzir a emissão de gases estufa e melhorar a qualidade de vida de seus habitantes ”Nós estamos estudando para contribuir com as cidades. Este é meu trabalho hoje em dia. O que é a cidade sustentável? É você ter as pessoas com boa locomoção, implantando saneamento, reduzindo poluição atmosférica, com a informação fluindo e os hospitais adequadamente preparados. Assim, você possibilita a melhoria de qualidade de vida e a redução de certas doenças nas cidades. É um novo modelo? É modelo em que você incorpora a variável ambiental e qualidade de vida na sua gestão”. Marcelo Firpo, que trabalha com o Mapa dos Conflitos Ambientais, vê agravarem-se tragédias e desastres. Para ele, a saída estaria na construção de uma economia mais voltada à vida do que à produção de lucro. “Esse capitalismo, que muitos autores chamam de capitalismo de pilhagem e de espoliação, que na América Latina é marcado pelo neoextrativismo, com uma intensificação da exploração de recursos naturais, é um modelo radicalmente insustentável e socialmente injusto. A alternativa é uma domesticação da ganância do mercado e a construção de outro modelo de sociedade em que o mercado conviva com lógicas sustentáveis e solidárias de economia. Eu não sei que tipo de modelo vai ser esse, mas será algum tipo de socialismo que possa conviver com algum nível de mercado domesticado e que deveria passar pelo respeito aos trabalhadores, camponeses e povos tradicionais”.