A comercialização de energia elétrica no Brasil é regida por uma complexa estrutura que proporciona liberdade para a contratação de energia via mercado, enquanto ao mesmo tempo preserva o controle centralizado sobre a operação e sobre a formação de preços no mercado de curto prazo. Pode-se inferir que essa combinação busca obter os benefícios da eficiência promovida pela concorrência, sem abrir mão dos ganhos sinérgicos da operação centralizada e sem dar margem ao risco de abusos de poder de mercado nas transações de curto prazo. Tal arranjo depende, no entanto, da preservação de um alto grau de previsibilidade na política operativa e de um processo de precificação difícil de ser mantido diante das constantes mudanças de cenário.
O atual arranjo comercial permite que: (a) Geradores, Comercializadores, Consumidores Livres e Especiais possam comercializar energia, por sua conta e risco, por meio de Contratos Bilaterais no Ambiente de Contratação Livre; e (b) que os Geradores possam comercializar sua energia com as Distribuidoras, que atendem aos consumidores regulados, por meio de leilões públicos organizados pelo governo no Ambiente de Contratação Regulada.
Isso permite que os usuários se beneficiem: (1) por um lado, da eficiência induzida pela concorrência de mercado; e (2) por outro lado, da coordenação centralizada da operação física das usinas, que é conduzida pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), e da formação dos preços de liquidação na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que é definida por algoritmos matemáticos.
Embora os Geradores não tenham autonomia sobre as decisões a respeito de quando suas usinas serão acionadas, e embora os Distribuidores, Comercializadores, Consumidores Livres e Especiais não tenham autonomia sobre o preço de liquidação de energia (PLD, ou Preço de Liquidação de Diferenças) no mercado de curto prazo na CCEE, esse delicado arranjo é sustentado pelos “Procedimentos de Rede” e modelos matemáticos oficiais que balizam o planejamento, a operação e a formação de preços do mercado de curto prazo.
Os Procedimentos de Rede detalham os processos a serem seguidos pelo ONS no planejamento da operação eletroenergética, na administração da transmissão, e na programação e operação em tempo real do Sistema Interligado Nacional (SIN). Além disso, o planejamento da operação do ONS é balizado por um conjunto de modelos matemáticos, codificados em dois programas computacionais oficiais: o Newave, utilizado para o planejamento da operação de médio e longo prazo, e o Decomp, para o planejamento da operação de curto prazo. Esses programas também são utilizados pela CCEE para definir os PLDs semanais nos quatro subsistemas (Norte, Nordeste, Sudeste/Centro-Oeste e Sul) e nos três patamares de carga (Pesada, Média e Leve).
O equilíbrio que sustenta o arranjo atual é baseado na existência de um valioso tripé de atributos: previsibilidade, transparência e replicabilidade. Esse tripé é fundamental para que os agentes possam comercializar a sua energia em contratos de longo prazo, mesmo não tendo autonomia sobre a operação e sobre os preços de suas transações no mercado de curto prazo.
No entanto, o tripé acima foi recentemente abalado por uma mudança de cunho administrativo ao se alterar a forma de representar restrições operacionais de vazões das hidrelétricas do rio São Francisco.
Em junho, a Superintendência de Regulação dos Serviços de Geração (SRG) da Aneel emitiu ofício solicitando que, no planejamento da operação, o ONS reduzisse a restrição de defluência mínima das hidrelétricas de Sobradinho, Itaparica e Xingó de 1.300 para 800 m3/s até dezembro de 2016, e que também efetivasse uma revisão prospectiva das restrições de defluência mínima da hidrelétrica de Três Marias. O ONS analisou a questão e “atendeu” ao ofício da Aneel por meio da adoção de “metas fixas” para a defluência dessas usinas, assim como a de Três Marias, pela inserção de novas restrições durante seis meses no Newave (programa que se concentra em cenários estruturais e de médio e longo prazo, ao contrário do Decomp, que incorpora as condições conjunturais de curto prazo).
A alteração não impactou significativamente a forma como o sistema estava sendo operado (já que a restrição de defluência mínima dessas usinas já vinha sendo praticada desde 2014), mas alterou significativamente os preços de liquidação.
Embora a iniciativa da SRG tenha o objetivo (e o mérito!) de alinhar as expectativas futuras e a representação nos modelos matemáticos por meio da incorporação das restrições operativas que poderão vigorar nos próximos meses, a incerteza introduzida no mercado por esse tipo de alteração repentina pode vir a ser até mais prejudicial do que benéfica.
A incorporação da restrição no PMO foi efetuada antes mesmo da Agência Nacional de Águas (ANA), autoridade responsável pela definição das condições de operação dos reservatórios, autorizar a manutenção da descarga mínima defluente nesse patamar nos meses de julho a setembro.
Além disso, todas as resoluções autorizativas da ANA são muito claras: a autorização é de caráter temporário (as resoluções geralmente são para o período de um a três meses, no máximo) e, o que é mais importante, são a título precário.
Há, ainda, menção explícita de que a autorização pode ser suspensa ou revogada a qualquer momento por iniciativa da ANA ou para a passagem de comboios de navegação, o que inviabilizaria a incorporação da restrição até dezembro da perspectiva estritamente formal.
Trata-se, portanto, de uma restrição conjuntural para a qual há precedente para a incorporação dos fatores conjunturais na modelagem do Newave e Decomp somente nos dois primeiros meses para fins de precificação. Tanto é que a CCEE solicitou republicação dos PLDs do mês de julho de 2016 recalculados dessa forma.
Embora a Aneel não tenha autorizado a republicação do PLD (segundo decisão tomada na Reunião Pública de Diretoria do dia 06 de setembro), o episódio deixa claro que é preciso aprimorar a governança institucional e o processo de alteração dos dados de entrada dos programas computacionais, pois a forma pela qual as mudanças foram implementadas no Programa Mensal de Operação (PMO) de Julho foi inapropriada.
A possibilidade de que as autoridades possam, a qualquer momento, implementar alterações conjunturais com potencial de ocasionar impactos sobre a operação e sobre os preços eleva substancialmente o risco de comercialização de longo prazo. O efeito final dessa incerteza é o encarecimento do serviço para o consumidor.
Além disso, tais intervenções invariavelmente acabam sendo questionadas na justiça, o que também eleva custos e introduz novas incertezas durante a longa tramitação nos tribunais. A própria Aneel já manifestou inúmeras vezes que tal judicialização é extremamente indesejável para todos.
Poder-se-ia argumentar que, apesar de ainda não haver autorização formal para a manutenção dessa restrição até dezembro, esse é o cenário mais provável e, portanto, o mesmo define a melhor configuração de dados a ser considerada nos programas computacionais para fins do planejamento da operação.
No entanto, o mesmo não pode ser dito para fins da precificação.
A Aneel e o ONS estão corretos em buscar a aderência entre a operação, a precificação e a realidade, mas também é importante manter a estabilidade e a previsibilidade da operação e precificação, sem as quais se desestrutura a comercialização de médio a longo prazo.
Não infrequentemente esses dois princípios – a aderência à realidade, de um lado, e a previsibilidade da operação e precificação, de outro lado – entram em conflito e torna-se necessário optar por soluções de compromisso.
Há uma série de situações em que deliberadamente tem-se optado por soluções de compromisso no setor elétrico quando os dois princípios acima entram em colisão. Eis alguns exemplos: (1) os preços de liquidação na CCEE não levam em conta as restrições elétricas conjunturais internas de cada Submercado, que por sua vez são levadas em conta pelo ONS nos Programas Mensais de Operação; (2) as revisões das projeções de carga são realizadas apenas quadrimestralmente, apesar de a Programação da Operação ser revisada mensalmente; (3) os preços de liquidação na CCEE são definidos com base nos Custos Variáveis Unitários (CVUs) das termelétricas definidos pelo preço original indexado (“CVU Conjuntural”), enquanto o planejamento da operação de médio prazo é baseado em projeções de preços futuros (“CVU Estrutural”).
Em todos os exemplos acima, de uma forma ou de outra, optou-se por uma representação diferenciada, sacrificando em algum grau a aderência à realidade para preservar uma certa estabilidade e previsibilidade.
Portanto, dada a natureza especulativa (uma vez que não se pode afirmar taxativamente que as restrições serão mantidas até dezembro), convém ponderar se não seria o caso de admitir uma representação diferenciada no Newave para fins da operação e para a precificação, como já é feito em outras situações em que há diferenças entre as condições conjunturais e estruturais.
Embora a SRG tenha atuado com a motivação correta, alterações na forma de representação de condições estruturais e conjunturais nos modelos não devem ser fonte de insegurança junto aos agentes de mercado.
Mudanças desse tipo deveriam ser previamente apresentadas aos agentes com mais antecedência, com justificativas sobre a motivação das mudanças, e oferecendo ampla oportunidade para a manifestação dos agentes. A realização de audiências públicas, ferramental consagrado pela Aneel e que se tornou referência de excelência para as demais agências, seria uma excelente forma de promover esse processo.
A separação das transações físicas conduzidas pelo ONS das transações financeiras realizadas na CCEE só é viável se o tripé “previsibilidade, transparência e replicabilidade” for respeitado. Afinal, a Aneel precisa ter como prioridade a preservação da confiança do setor, sempre em busca de sua missão de “proporcionar condições favoráveis para que o mercado de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e em benefício da sociedade”.