A edição de domingo (24/5) do jornal O Globo traz reportagem sobre estudos e ações na justiça que denunciam exposição de trabalhadores a substância cancerígena. A contaminação ocorrida por benzeno é destaque no texto, através de estudos realizados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Na ENSP, o trabalho desenvolvido pelo Cesteh Avaliação da exposição ocupacional ao benzeno em postos de combustíveis do município do Rio de Janeiro: uma abordagem integrada para as ações de vigilância em saúde é ressaltado nas falas do pesquisador Marco Menezes.
Confira, abaixo, a íntegra da reportagem.
Estudos e ações na Justiça denunciam exposição de trabalhadores a substância cancerígena
Benzeno é ameaça a frentistas e empregados do setor petroquímico; Petrobras foi condenada por morte de funcionário
por Flávia Milhorance
O Globo – 24/5/2015
RIO - Foram os 22 dias mais longos e mais curtos da vida de Júlia Krappa e dos dois filhos, então com 4 e 9 anos. Em 14 de setembro de 2004, seu marido, Roberto Krappa, chegou em casa com manchas vermelhas após passar a noite na refinaria da Petrobras em Cubatão, São Paulo, onde trabalhou por 11 anos. Naquela manhã, reclamou de vazamentos nos tanques de combustíveis, queixa que não era rara. Logo, a gengiva começou a sangrar. Nesse momento, Roberto suspeitou que estava contaminado. Ele sabia que lidava com benzeno, substância cancerígena presente nos produtos da empresa.
Durante o dia, o casal percorreu médicos, mas voltou para casa sem resposta. Na manhã seguinte, Roberto levou os filhos à escola e, horas depois, foi internado, com hemorragias internas e alterações graves no sangue. A partir daí, as lembranças de Júlia são da dificuldade do diagnóstico, da piora rápida dos sintomas, do aniversário de 36 anos dele no hospital, em coma. No dia 5 de outubro, morreu de leucemia promielocítica aguda, que, segundo o laudo médico, foi provocado pela exposição ao agente.
— Todos conheciam o risco e usavam equipamentos de proteção, mas não parecia um risco real — conta Júlia, que ganhou os processos judiciais até o Supremo Tribunal Federal contra a empresa (embora ainda haja embargos).
Muitos nunca ouviram falar do benzeno, mas convivem com ele diariamente. No passado, foi bastante usado, até em loção pós-barba. O crescente número de estudos demonstrando seus malefícios foi eliminando-o do convívio. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer classifica-o como cancerígeno do grupo 1 (nível mais alarmante), e a Organização Mundial de Saúde diz que a exposição a ele é “uma preocupação prioritária de saúde pública”. Proveniente da destilação do carvão e do petróleo, está nos processos produtivos de indústrias petroquímica e siderúrgica. É encontrado na gasolina, na tinta e no plástico; está até no cigarro. Desde a década de 1980, sindicatos vêm intensificando o alerta do risco sofrido por profissionais de determinadas áreas das empresas. E recentemente mais um grupo tem ganhado atenção: os frentistas.
Novos estudos, campanha e leis buscam melhorar a segurança desse pessoal. Pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul analisaram os efeitos do benzeno em 60 frentistas. Mediram sua concentração por exames de sangue e urina e concluíram que os níveis estavam dentro dos limites de segurança preconizados internacionalmente. Mesmo assim, eles apresentavam alterações moleculares indicativas da exposição ao benzeno.
— Mostramos que, quando o agente é cancerígeno, não há limite seguro — diz a professora Solange Garcia, autora do estudo, publicado na revista “Environmental Research”. — Vimos que eles estão, sim, com danos em proteínas, lipídios e até no DNA. Se nada for feito, há chances de patologias.
No Brasil, desde 1995, o benzeno não deve ultrapassar 1% da concentração de misturas líquidas (gasolina) e 2,5 partes por milhão (ppm) do ar. No organismo humano, o limite é menor.
CAMPANHA #PARENOAUTOMÁTICO
Os cientistas do Sul integram a campanha #PareNoAutomático, que vem se popularizando, na esteira de leis estaduais que obrigam o frentista a encher o tanque de gasolina sem ultrapassar a trava de segurança. Com isso, ele evita o contato com o químico, inalado ou através da pele. No Estado do Rio, a norma vale desde janeiro.
— Esses três ou quatro litros a mais no tanque não fazem diferença para o motorista, mas são suficientes para triplicar a exposição do frentista — defende o deputado estadual Carlos Minc (PT), que movimenta a campanha na capital e que comprou outra briga: é autor do projeto de lei 2.989/14, para proibir a comercialização de gasolina que contenha benzeno. — Em 1995, houve polêmica sobre a lei estadual para retirar o chumbo (cancerígeno) da gasolina, mas conseguimos aprová-la, obrigando a investimentos de US$ 30 milhões nas refinarias.
Nem todos os especialistas concordam que essa é uma medida viável. Entre os argumentos, a impossibilidade de extrair o composto ou a necessidade de mudanças profundas nas refinarias. Mas um dos que fazem coro à proposta é o pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador da Fiocruz, Marco Menezes, garantindo que há tecnologia disponível para tal. Ele desenvolve uma pesquisa com 150 frentistas do Rio, dos quais 30% têm alterações hematológicas, segundo dados parciais.
— Entre elas, há a redução dos leucócitos, um indicativo da exposição — diz Menezes, que pondera: — Precisamos acompanhá-los por mais tempo para ver se isto é pontual ou crônico. De qualquer forma, são alterações importantes e, por isso, agentes de saúde da família estão acompanhando os frentistas e se empoderando da discussão.
O presidente do sindicato dos frentistas, Eusébio Luís, se surpreendeu com os dados da Fiocruz, e diz que frentistas e donos de postos ainda precisam conhecer os riscos. Já o presidente do sindicato dos donos de postos de combustíveis, João Cursino, garante que empresários e frentistas estão cientes.
— Antes de a lei ser aprovada, houve orientação. O problema é o consumidor, que pede para passar do automático e esquece que isto danifica o próprio carro — afirma Cursino.
No caso dos petroquímicos, a discussão vem de duas décadas, mas o tempo foi insuficiente para garantir a segurança do grupo, segundo o auditor fiscal do trabalho Danilo Costa, cujo tema de doutorado da USP foi a exposição ao benzeno.
— Na comparação com os anos 80, a melhora é visível. Não tinha árvore em Cubatão, só fumaça. Mas o controle da substância é precário, os casos não têm repercussão, e os que se envolvem ficam comovidos, porque são verdadeiras tragédias — desabafa.
LONGO CAMINHO ATÉ A REPARAÇÃO
Márcio da Silva, Sebastião Marques, Theodoro Bento e Elias José são ex-funcionários da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) ou de subsidiárias, de Volta Redonda, onde trabalharam nos anos 80 e 90. Todos sofrem de leucopenia e têm processos contra a CSN. Não só pela doença, mas pelo tratamento recebido: à época, lembram que pombos conviviam com os trabalhadores e, quando começavam a morrer, era sinal de vazamento de benzeno; os primeiros casos de leucopenia eram associados a “doença de negros”. Márcio não entendeu quando passou a fazer exames de sangue a cada duas semanas na empresa, já que antes o procedimento era a cada seis meses. Decidiu pagar por um exame particular e descobriu a leucopenia. Elias, que passou por situação parecida, lembra que ainda passou meses num vestiário.
— Batia ponto de entrada e saída, mas não trabalhava. A CSN não queria confirmar no INSS o diagnóstico e escondia o caso — denuncia.
As empresas não comentaram os casos especificamente. A Petrobras afirmou, por meio de nota que “todas as recomendações legais e técnicas são observadas, e medidas de mitigação da possibilidade de exposição são tomadas”; e a CSN, também por nota, diz que mantém “uma rígida política de segurança do trabalho e cumpre as normas previstas pela legislação”.
Condenações recaem sobre companhias que usam benzeno. Mas há um longo caminho até a reparação, devido à dificuldade de estabelecer o nexo causal, ou seja, provar que a doença foi causada pela exposição à substância. Para o Ministério do Trabalho, alterações sanguíneas ou câncer junto ao histórico de exposição ocupacional são suficientes. Mas, só na teoria.
— Uma questão crítica é a sistemática negação do nexo causal pelas empresas — diz Arline Arcuri, pesquisadora do Fundacentro, centro de segurança e saúde no trabalho ligado ao ministério.
Arline lembra que no boom dos anos 80 chegaram a ser identificados mais de 2.500 doentes, mas que, com o endurecimento legal, empresas internalizam o tratamento para evitar o envio de casos ao INSS. Com isso, as estatísticas são irreais.
— Há o que chamamos de silêncio epidemiológico na petroquímica e na siderurgia. O adoecimento no trabalho tem um impacto negativo para a empresa, então elas mascaram, escondem, dão desculpas fajutas.