No dia 30/1, o Núcleo de Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Neepes/ENSP/Fiocruz) promoveu a primeira sessão de 2019 do Centro de Estudos Miguel Murat de Vasconcellos da ENSP (Ceensp). A atividade aconteceu na sala 410 da ENSP e fez parte da segunda edição do curso de verão Saúde Coletiva em Diálogo com as epistemologias do Sul, apoiado pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. “ Começamos o ano letivo um pouco mais cedo. Diante de tudo o que está acontecendo, se faz necessário”, comentou a vice-diretora de Pesquisa e Inovação, Sheila Mendonça.
O diretor da ENSP, Hermano Castro, que, em 1º de fevereiro, esteve presente em atividade do curso, organizado pelo Neepes, afirmou sua importância nesse contexto de sofrimento causado nas populações ribeirinhas, indígenas, por crimes ambientais, disputas de terra. “Esses povos tradicionais estão completamente abandonados, desprotegidos neste momento. Precisamos aprender, por meio desse curso, como nos descolonizar. Vivemos, recentemente, o processo de uma disputa da colonização. Nós vimos brasileiros levantando bandeiras dos colonizadores”, finalizou.
O coordenador do Núcleo de Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/ENSP/Fiocruz) e do curso de Saúde Coletiva, Marcelo Firpo, ressaltou a importância tanto do curso como do Ceensp em promover cada vez mais as abordagens pós-coloniais e a forma alternativa de pensamento, podendo assim perceber uma transformação de conhecimento no ser humano. “Várias pessoas que estão fazendo o curso intensificaram, por diversas vezes, essas abordagens. Quando entram numa forma alternativa de pensamento, parece que o outro e nós, também, nos transformamos, criando um sentido de responsabilidade e capacidade de pensar a realidade. É justamente isso que queremos trazer para a saúde coletiva”. A sessão do Ceensp contou com duas mesas-redondas, pela manhã e à tarde.
Inspirações e desafios epistemológicos: saúde e ambiente, saúde do trabalhador e vigilância em (da) saúde
Dando início às palestras, o pesquisador e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Bruno Sena Martins, fez um breve relato sobre o contexto histórico relacionado às Epistemologias do Sul. “Isso é uma metáfora de um sofrimento injusto causado pelo capitalismo, colonialismo e pelo poder, tendo uma dimensão histórica que se alimenta de um pensamento hierárquico de metrópoles e territórios coloniais”, explicou o pesquisador.
As construções de todo esse pensamento são baseadas nas experiências consideradas primordiais no que diz respeito à polarização das Epistemologias do Sul. Ela tem a capacidade de mudar nosso lugar de pensar e nos inspirar para assimilar a transcrição social do mundo. “Quando dizemos que somos utópicos, não quero dizer que acreditamos num mundo que nada tem a ver com este; somos utópicos porque somos idealistas. E isso nos faz lutar contra as injustiças”, salientou Bruno.
Para o estudo da Epistemologia, as compreensões das linhas abissais são fundamentais. Linhas abissais são mais ou menos visíveis, que separam a função de invisibilidade e não existência, dividindo o mundo em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Seguindo essa linha de pensamento, o pesquisador cita o pensamento pós-abissal, um pensamento que não seja marcado pelas estruturas de desigualdade, que não exista uma hierarquização dos saberes. “Criar espaços de conhecimentos que foram impedidos pelas linhas abissais, procurar que nossas práticas sociais sejam capazes de transforma aquilo que é inexistência e invisibilidade em conhecimento e visibilidade”, concluiu Bruno.
Para construir conhecimento cultural, entender o pensamento considerado diferente do nosso, é fundamental, e por isso importante, conhecer as Epistemologias do Norte, os poderes exercidos para a construção do novo pensamento. Não existe apenas uma forma de conhecimento. Outro ponto importante é trabalhar o lugar de fala, que tem a ver com o lugar de onde viemos e o que fazemos. “Essas experiências são primordiais para as epistemologias do Sul polarizar. Ela tem a capacidade de nos fazer pensar”, alertou o pesquisador.
A vigilância em saúde e descolonização do saber – vigilância civil da saúde foi o tema abordado pelo pesquisador da ENSP Gil Sevalho, que traçou um panorama histórico da saúde pública no Brasil, apresentando uma breve trajetória do campo da vigilância em saúde. Para ele, o modelo atual de vigilância, apesar de consagrado internacionalmente como eficaz, é de forma clara caracterizado pela perspectiva de força, domínio, assim como são as expressões usadas na vigilância epidemiológica, em que predomina o autoritarismo nesse tipo de medida prescritiva.
Sobre a descolonização do saber, Sevalho considerou a importância do tempo irreversível em nossas vidas e no fazer científico. “Essa perspectiva de tempo vai estar em constante mudança, do mesmo modo que o conceito de cultura, mas entra em choque com o determinismo da ciência.”
De acordo com Sevalho, a vigilância civil surgiu como alternativa ao monitoramento civil dos serviços de saúde, em que a ideia era desenvolver um acervo que fosse criado pelas pessoas envolvidas na saúde. “Perceberam que existia uma diferença de línguas entre profissionais de saúde e de população; então, eles colocaram a população para atuar junto com os profissionais, o que ficou conhecido como 'função compartilhada do conhecimento'”. Essa ação foi também conceituada 'produção do terceiro conhecimento', já que não eram conhecimentos específicos de profissionais nem da população, pois o que se produzia era outro saber. Também posta em ação, outra prática foi a ouvidoria coletiva, que se diferencia pelo fato de ter lideranças locais identificadas para desenvolver sistema de vigilância.
O pesquisador finalizou sua palestra abordando a importância das práticas contra-hegemônicas, uma contraposição à colonização do saber e a importância da ideia da tradução cultural para entender e restaurar a questão da saúde.
Reflexões sobre Pics, saúde mental e populações em situação de rua
Na parte da tarde, a mesa Inspirações e desafios epistemológicos: saúde mental, terapias integrativas e complementares e população em situação de rua, coordenada pelo professor da Universidade de Coimbra, João Arriscado Nunes, contou com as participações do professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Charles Tessar; dos pesquisadores da ENSP/Fiocruz Paulo Duarte Amarante e Roberta Gondim.
Durante o debate, o professor João Arriscado destacou a pluralidade da mesa e as diferentes formas que os expositores problematizaram a linha abissal e a divisão entre uma sociedade mais protegida em contraposição às periferias, expostas a todo tipo de violência. “A linha invisível que separa as zonas ditas civilizadas, aquelas que têm direitos, das zonas de exclusão, onde habitam as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, que são tratadas como descartáveis”, constatou.
Já o médico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Charles Tessar, apresentou um histórico das Práticas Integrativas e Complementares (PICs) e suas diversas nomenclaturas ao longo do tempo. Tessar observou certa tendência da literatura médica a não considerar as PICs como parte de uma prática consagrada na ciência biomédica. Assim como Arriscado, Tessar utilizou a analogia do conceito de linha abissal do sociólogo Boaventura de Souza Santos para a reflexão sobre essas atividades: “O que está do lado de lá – a própria definição já remete um pouco às linhas abissais – é o que não está legitimado pela sociedade, pela academia e pela ciência, pelas profissões da saúde”, afirmou Tessar.
Em sua apresentação, a pesquisadora da ENSP/Fiocruz Roberta Gondim apontou a invisibilidade da população em situação de rua na sociedade. Nesse contexto, refletiu sobre a produção da academia no campo e de como uma postura, na maioria das vezes, distanciada do pesquisador pode afetar a pesquisa (o trabalho, a investigação). “Eu compartilho a ideia de que campo não é algo fora de mim, não é algo fora daquilo que eu entendo como produção de realidade, e sim como parte constitutiva de uma certa historicidade da qual eu sou partícipe.”
Gondim ressaltou ainda que a academia precisa entender que não está estudando alguém que está fora do mundo, mas, sim, escrevendo sobre alguém que tem um nome, um corpo, uma história. “Não falo em pessoas em situação de rua em generalidade, eu trago um sujeito que incorpora processos políticos, processos sociais e processos subjetivos importantes para a gente pensar no nível de um estudo não extrativista.”
Na ocasião, o pesquisador Paulo Amarante constatou que a aposta na medicalização é um dos grandes obstáculos à Reforma Psiquiátrica, uma forma de padronizar as pessoas, fazendo com que elas se adaptem à sociedade – esta sim doente – , em vez de tentar transformá-la. Amarante lembrou da influência que a obra de Fanon exerceu em vários autores no Brasil: “Para Fanon, a questão não estava em terapia, nesse tratamento individual, e sim na transformação do mundo ”, argumentou.
*Sob supervisão de Joyce Enzler