A Fiocruz divulgou, na terça-feira (5/2), um estudo que alerta para os impactos, causados à população, do desastre da mineradora Vale do Rio Doce em Brumadinho (MG). O estudo foi divulgado em um debate que contou com a presença dos pesquisadores responsáveis pelo trabalho. Entre os riscos estão a possibilidade de surtos de enfermidades, mudanças no bioma e agravamento de problemas crônicos de saúde, como hipertensão, diabetes e doenças mentais.
A diretora da Fiocruz Minas, Zélia Profeta, enviou uma mensagem de áudio aos participantes do evento em que disse que "é fundamental fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) para enfrentar essas situações". Para o pesquisador do Observatório Nacional de Clima e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Diego Xavier, desastres como o de Brumadinho podem ter efeitos que se estenderão por centenas de quilômetros do lugar de origem. Durante o evento, foi sublinhada a importância do SUS neste momento pós-desastre e sugeridas propostas de ações concretas.
A área de Brumadinho é endêmica para febre amarela e esquistossomose, doenças transmitidas por mosquitos e caramujos. O rompimento da barragem causa uma alteração brusca no ecossistema, que pode matar predadores naturais e criar condições favoráveis para esses vetores. “Isso pode aumentar a população de mosquitos e caramujos, causando surtos”, disse Xavier. Ao mesmo tempo, os serviços de vigilância e de saúde da região são afetados, o que prejudica o controle das doenças. A falta de coleta de lixo também pode trazer outra consequência, ao aumentar a população de roedores e assim fazer crescer o risco de um surto de leptospirose. Além disso, o consumo de água e alimentos contaminados, que causam diarreia e gastroenterites, traz riscos. Outro problema é que os contaminantes presentes na lama podem ficar no ar e chegar ao sistema respiratório da população.
“Além das questões de saúde, podem ser previstas perdas econômicas, dos ecossistemas, de acesso aos serviços de saúde e de emprego, entre outras”. Xavier comentou que é de grande importância que seja dada atenção especial aos efeitos psíquicos que, juntamente com os demais agravos de saúde, devem ser monitorados por dois anos. Ele também sugere medidas de prevenção contra surtos de doenças transmitidas por vetores, como dengue, zika, febre amarela e chikungunya, a reconstrução de sistemas de abastecimento de água e saneamento e a intensificação de ações de vigilância da qualidade da água para consumo humano. O levantamento foi feito com base em informações locais, concedidas por secretarias de Saúde da região, sistemas de dados públicos e estudos sobre outros desastres.
Como os custos, de curto e, sobretudo, longo prazo, são, em sua grande maioria, de responsabilidade dos órgãos governamentais, Xavier sugere que desastres assim devem servir para a instituição de um novo tipo de parceria público-privada. “Não é mais admissível que uma empresa, como a Vale, continue auferindo lucros e os danos sejam todos pagos pelo SUS e pelas instâncias públicas. É preciso redesenhar isso”.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, lembrou que o acidente deve ser chamado pelo nome da empresa, e não pelo do município onde ocorreu. “Quanto vale uma vida? Quanto valem tantas vidas perdidas? Não há dinheiro que pague. As agendas de direitos humanos e cidadania precisam estar prontas para responder a esses desafios. A Fiocruz está mobilizada para contribuir e tem mantido estreita colaboração com as secretarias municipal e estadual de Saúde”. Para Cristovam Barcellos, também do Observatório do Clima e Saúde, o “SUS não serve apenas para tratar dos feridos, resgatar corpos e cuidar das famílias. É claro que isso também é parte integrante, porque não existe SUS sem solidariedade. Mas é também assistência, vigilância, prevenção etc”.
O pesquisador Mariano Andrade, do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergência de Desastres em Saúde (Cepedes) da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), disse que o desastre pode afetar muitos outros municípios e ainda o Rio São Francisco. “O que soubemos até o momento é apenas a ponta do iceberg. Com o tempo, surgirão outras consequências. E, infelizmente, existem 24 mil barragens em todo o Brasil, muitas em estado de risco. Desde os anos 1950 as barragens vêm apresentando falhas devido, em geral, a um acúmulo de rejeitos muito além do que o que deveria ser permitido”.
O pesquisador Carlos Machado, também do Cepedes, completou a intervenção de Andrade e disse que o número de acidentes diminuiu, mas aumentou a severidade deles, com riscos, doenças e agravos que se prolongam no espaço. “Por isso sugerimos que, enquanto não se fizer uma minuciosa e rigorosa revisão da legislação, não se construam novas barragens. Propomos uma moratória de barragens, até que haja uma nova legislação, baseada nos critérios de segurança e sustentabilidade ambiental seja discutida, elaborada e votada no Congresso, em um debate que envolva parlamentares, ONGs, sindicatos, população e instituições científicas”.
Machado propõe uma ampla inspeção e fiscalização das 790 barragens de rejeitos, feita por órgãos ambientais e de saúde do trabalhador, além de Delegacias Regionais do Trabalho e sindicatos. Segundo ele, também é urgente melhorar a capacidade de resposta aos desastres pela constituição de planos de preparação aos desastres (sistemas de alerta, salas de situação, sistemas de comunicação e melhor organização da rede de vigilância e atenção em saúde). Há barragens de rejeitos em 173 municípios, em 20 estados da Federação. Minas Gerais é o estado que tem mais barragens desse tipo, 357. Em seguida vem o Pará, com 109. Das 790 barragens de rejeitos (pouco mais de 3% do total de 24 mil), apenas 14% são classificadas por risco e 22% por dano potencial. Somente 765 dispõem de Plano de Ação de Emergência. E apenas 4.510 (19%) estão submetidas ao Plano Nacional de Segurança de Barragem.
Mariano Andrade lembrou que muitos municípios se tornaram dependentes da atividade de mineração e das empresas. “As prefeituras ficam reféns da arrecadação gerada pela atividade. Se a empresa demite, por exemplo, aumenta o desemprego, aumenta a procura pelas unidades públicas de saúde, devido à perda do plano de saúde privado. As companhias são muito fortes nesses municípios, investem em candidatos de suas preferências nas eleições, influem poderosamente na vida das cidades”. Criticando a avaliação de riscos das barragens, ele lembrou que o das estruturas de Mariana e Brumadinho era classificado como baixo. “No entanto, ambas ruíram...”.
Para Cristovam Barcellos, “a república brasileira é complicada. Após Mariana, o Ministério Público acionou a empresa, exigiu reparação e restauração, mas o Executivo ficou de fora. Ou seja, não funcionou. O SUS arca com os gastos, que são imensos. Está claro que essa realidade precisa ser repensada. O papel da empresa em desastres como esse tem que ser revisto”. Barcelos disse que a capilaridade do SUS tem que ser utilizada para evitar a repetição desses casos. “Onde tem barragem tem que haver articulação do SUS”, reforça ele.
Carlos Machado observa que não é possível esquecer. “Dentro de pouco tempo surgem novas grandes questões e a mídia para de abordar o caso, os recursos minguam, a população se volta para outros problemas. É necessário termos um plano para os próximos seis meses e outro para os próximos dois anos. Assim conseguiremos planejar ações que resultem em um processo digno e participativo de reconstrução das condições de vida das comunidades afetadas e dos trabalhadores, resultando em uma realidade melhor e mais segura do que antes do desastre”.