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sábado, 3 de setembro de 2011

CRÔNICAS DO VERBO ENLATADO 5

As estórias que enganavam os sonhos


Fui criado pelos meus avós, não que tenham se ocupado em me tratar como filho, mas me ilustraram para compreendê-los como seres humanos e não como deuses infalíveis. Eram pessoas que na minha formação construíram alicerces para que a realidade fizesse parte das minhas necessidades.
Muitas estórias, muitas palavras e fantasias que não se revelavam em castelos e cavaleiros, mas que se concretizavam em pessoas que lutavam para sobreviver e mesmo assim eram felizes na medida do possível.
E assim, entre gestos amigos, carinho e afeto, minha história se iniciava encostada na minha percepção em formação, mas crítica, do que acontecia e dos meus desejos que sonhava e não aconteciam.
Pai e mãe eram figuras distantes, na época sabia apenas do simbolismo do que representava um pai, mas não o tinha e nem uma explicação concreta; apenas com o tempo a raiva e o desprezo por ele de minha avó.
Contextualizando a época, era uma mulher intelectualizada, trabalhava como professora fazia cursos, tinha reconhecimento profissional e assim foi até a sua aposentadoria; porém emocionalmente era falha, não conseguia concretizar uma relação afetiva duradoura e sofria com um desfile de parceiros que não a satisfaziam.
Morou praticamente sempre com meus avós, só ou acompanhada. Eu precisava de espaço e nos livros encontrei um refúgio.
Em relação a mim, ela demonstrava muita determinação, mas pouco carinho. Satisfazia-se com a atenção dos meus avós por mim e por sua crença e objetivos.
Triste é o fim de todas as crenças que não são embasadas no que é real, e sim na percepção desfocada de uma projeção. Sempre amei meus avós como eles realmente foram, e pela sua clareza na minha formação, sempre estamparam sua presença no papel que representavam de avós sem quererem o papel distorcido de pais.
E nas suas possibilidades e ações, realizaram de uma forma coerente que me permitiu ser bem lúcido sobre o papel de cada um. Senti falta de ter um pai, senti falta de ter uma mãe.
Nos livros, encontrava as famílias mais felizes até as mais tristes, ricas ou pobres, doentes e saudáveis, com pais que por mais ausentes ofereciam carinho e amizade. E ao mesmo tempo em que me alimentava culturalmente, demonstravam o quão sozinho eu estava.
Cercado de pessoas, mas só, levado inconscientemente pela fraqueza emocional de uma carência afetiva mal resolvida que buscava compreensão e amor.
Uma criança é apenas uma criança independente de seu grau cognitivo de aprendizado e percepção. Sua análise é acompanhada da maturidade emocional alcançada.
Hoje reflito as dores e angústias do que vivenciei na minha formação, e tento analisar e ser analisado para compreender em uma percepção mais completa sobre a minha existência.


Observo o quão comprometido fui e ainda sou pelo que senti falta, pelas mágoas indeléveis mais enraizadas. Como neto, fui abastecido de amor e cultura, mas como filho não me encontrei até hoje, seja na dor de um passado de ausências ou num presente de tentativas frustradas de um amor determinado culturalmente, mas nunca concretizado.
Uma mãe não deixaria o filho dentro de uma opção confortável e lutaria pela sua presença, independente das dificuldades, mas com a certeza do crescimento emocional de ambos.
Fico pensando que por tudo que a vida tem de clareza e dificuldades, sabemos que existem verdades que não são contestadas, até pela percepção que temos do aprendizado cultural e social.
Uma destas verdades é o amor que une as pessoas de um núcleo familiar, o amor de uma mãe pelo seu filho. E a inafiançável opção de abandono agravado por enfermidades físicas ou emocionais. Quem seria capaz deste ato? Existiriam justificativas plausíveis e humanas para que possamos compreendê-las.
Minhas lágrimas são metáforas que revelam uma criança triste, num adulto que perde a cada dia as fantasias inerentes ao sonho e que sempre clamou por amor, sem tê-lo efetivado em sua vida dentro de suas fragilidades emocionais originadas pela rejeição de uma relação plena.
Até hoje sentir a obrigação e não o sentimento espontâneo, nas atitudes de minha mãe é uma realidade que nem as minhas fantasias conseguem disfarçar. Um dos ensinamentos mais valiosos que recebi foi à incondicionalidade do amor.
Que nossos sofrimentos, desencontros e decepções, não devem nem podem nunca ser suficientes para nos afastarmos de quem precisa de nós. De que a nossa existência não tem sentido se não aprendermos com nossos erros e que faz parte errar pouco ou muitas vezes, que somos humanos e por sermos humanos devemos perdoar, não pelo ato em si, mas pela compreensão mesmo que não venha acompanhada de aceitação.
Perdoar é um ato de luz que transita entre o íntimo de nosso pensamento até o domínio de nossas emoções. Mas é mais do que chegar até o outro, é concretizar nosso ego, desfragmentado ao ponto de entendermos as motivações e a cegueira temporária de determinações ações.
Penso e escuto na trilha que o tempo me impinge, e me sinto cada vez mais longe de alguém que fui. Sou eu que afirmo, outro em si mesmo que tem a certeza de seus erros e a dúvida de seus acertos.
Mesmo tendo descoberto o que poderia ter sido os bloqueios foram mais fortes e sempre me impediram ir em frente. Chegou à hora de dar um fim a esta situação e ir até onde nunca fui.
E isto implica em não desistir, insistir, principalmente no que diz respeito a assuntos emocionais. Ser no lugar que não fui e lutar sem medo da dor.
Ser diferente já foi um tormento que hoje me alivia por não ser mais um e nem ser igual.